sábado, 10 de dezembro de 2011

Cores

Foi quando as mãos se transformaram em dois pincéis. Desses pincéis grandes, cheios de cerdas. Não havia controle dos braços. As pernas, os movimentos e a mente agoram seguiam outro ritmo, outro sentido. Pintava as cores que apareciam nos pensamentos.
E ia pintando sem parar pelos espaços vazios que preenchiam a falta cheia que tinha dentro de mim. Ia pintando as paredes. E havia uma parede minha. Só minha.
A parede que permeava o mundo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Vida

bom, estou indo agora. Não sei quando vamos nos ver de novo.
A vida tem dessas né? Cheia de surpresas. Em um momento estamos todos juntos e depois, nada mais se sabe.
é por isso que quando eu era criança, o que eu mais gostava era quando gente viajava para a casa da minha avó. era longe para uma criança (três horas de carro) contadas em ver o verde que seguia, as histórias que meu pai e minha mãe contavam na ansiedade de poder comer o franguinho com macarrão e tomar sorvete na sorveteria da cidade da minha avó.
a gente ia e voltava no mesmo carro. todo mundo junto. e naquele momento eu tinha a impressão de que nada, nada de ruim poderia acontecer comigo nem com a minha família. eu me sentia protegida no caminho de carro. era como voltar para o lugar mais seguro do mundo.
E de repente a gente tem que ir embora, assim, sem mais nem menos. E não se sabe para onde a gente vai, onde a gente chega. é como se tivéssemos uma missão guiada por algo, por alguém por alguma luz.
eu vi aquela foto cheia de luz, eu olhando para aquela luz.
e então eu a segui.
não fiquem tristes, não chorem.
estarei bem onde eu for e olharei e pedirei a cada manhã e a cada noite que protejam as pessoas que eu amo e também as que não conheço. e que o meu caminho seja de luz.
é isso. vou pedir isso para o natal desse ano e dos próximos: seguir com fé o caminho. seja lá qual for.
eu penso que a morte é algo muito relativo, mto. por isso que me dói toda vez que vejo alguém agindo com estupidez, com a falta de noção.
muitas vezes o que a gente precisa é apenas um colo e não uma lição de moral. muitas vezes o que a gente precisa é apenas voltar de onde a gente saiu e reencontrar tudo aquilo que deixava a gente mais em paz do mundo.
se eu pudesse morrer bem velhinha, numa cama ou bem nova, se eu tivesse tempo antes de morrer, eu diria: deixem as pessoas serem livres para serem quem quiserem. problemas graves são doenças, o resto, a gente dá um jeito. não surtem com o que não precisa.
vejam apenas que as pessoas precisam seguir o rumo de suas próprias luzes. saibam dar colo, mesmo que não sejam seus filhos. saibam olhar, mesmo que a pessoa não esteja te vendo e principalmente saiba ouvir e compreender, sem surtar.
a vida passa muito rápido pra tanta hipocrisia, tanta religião e tanta coisa pouca.
se eu pudesse dizer isso, eu diria. mas não dá. porque eu já fui.
então fica o meu protesto de dizer que quero que sejam no mínimo felizes e quando não o forem, que todos tenham o direito de ter um colo pra sentar.
mesmo que esse colo esteja distante e mesmo que quando parecer estar perto e estiver distante mesmo assim que saibamos perdoar.
a gente não sabe o nosso tempo, então vamos fazer o melhor.
e quando derem o melhor sorriso do mundo, lembrem-se de mim.

*para alguém que eu não tive tempo de conhecer, mas que soube admirar mesmo à distância.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

91

Dona Tereza completava naquela semana 75 anos. Católica fervorosa, Dona Teresa havia se mudado da casa onde viveu os últimos 50 anos para um apartamento. Essa foi uma imposição dos filhos de Dona Teresa, três homens, Carlos Henrique, João Henrique e Luís Henrique. Este último muito apegado à mãe.
Pois bem, a imposição da mudança veio com a morte do esposo de Dona Teresa, o senhor Augusto Henrique. Por tradição da família, todos levavam no nome o "Henrique" que vinha desde a época do avô de Augusto.
Mas enfim. Os filhos impuseram que Dona Teresa devia se mudar por segurança e também pelo apartamento ficar mais próximo da igreja Nossa Senhora das Dores que Dona Teresa frequentava.
- Olha mãe, disse Luís Henrique, aqui a senhora estará mais protegida e veja que bom, é perto da igreja.
Dona Teresa então se animou um pouco e sorriu pensando que dessa forma poderia ajudar melhor na paróquia e cuidar também da casa do padre que ficava na esquina do prédio onde Dona Teresa iria morar.
Mudou-se num final de semana. Apartamento 81, fundos. O apartamento dava para o quintal do prédio, de um verde sem igual e com duas palmeiras. Lindo o lugar. Dona Teresa ficou animada. Iria morar com Dona Teresa a menina Gilda, que tinha 25 anos, era virgem e namorava Marcelino. Senhor Marcelino no caso, que tinha lá seus 50 e tantos anos.
Gilda cuidava com gosto de Dona Teresa. Dormiam no mesmo quarto e conversavam horas a fio sobre os dons de Deus e a importância de se guardar.
- Eu casei virgem minha filha, em 1945 e até hoje homem nenhum, sem ser o meu falecido marido Augusto Henrique - que Deus o tenha...
- Amém - disse Gilda
- ...me tocou. É importante se guardar, minha filha.
Haviam se mudado há uma semana e ainda estavam nos preparativos da organização da casa, do guarda-roupa, da cozinha.
Foi então que naquela quinta-feira, em um dia de Sol forte e com uma noite de calor que Gilda, que tinha melhor audição que Dona Teresa ouviu um ruído no teto. Como não se lembrava que estava agora em um apartamento achou estranho aquele barulho e pensou que poderia ser um gato, um animal, algo assim.
Imediatamente se lembrou que morava agora em um apartamento e imaginou que a pessoa do 91 estivesse fazendo faxina.
Mas o ruído de arrastar os móveis estava apenas na parte do quarto e num local exato. Era a cama que ia e voltava do mesmo lugar. Gilda achou estranho e fez o nome do pai com as mãos.
Depois disso, Dona Teresa, que por mais que já tivesse idade estava ligada em tudo que acontecia perguntou:
- O que foi minha filha?
Gilda com medo de ser o satanás ou algo assim resolveu não falar nada e apenas disse:
- Reze Dona Teresa.
Dona Teresa começou a rezar e a rezar. Contudo, o barulho ia ficando mais forte, os gemidos iam aumentando e a cama ia se arrastando de um lado para o outro, um lado para o outro. E gemidos e gritinhos começavam a ecoar pela janela vindo parar no apartamento 81 de Dona Teresa.
- Absurdo!
Dona Teresa não quis pronunciar o que poderia ser aquilo. Pegou a vassoura e bateu com força no teto. Por dois segundos, os gemidos e os ruídos do 91 acalmaram, mas voltaram com força total em pouco tempo.
Dona Teresa e Gilda foram até a sala e fizeram uma oração.
Gilda, naquela noite, teve sonhos eróticos com Marcelino. Dona Teresa teve insônia lembrando de sua primeira vez com Augusto Henrique.
Mas ninguém disse uma palavra uma a outra. Apenas arregalaram os olhos e disseram ser aquilo um absurdo.
A única palavra que ouviram foi um bom dia no outro dia pela manhã no elevador.
- Bom dia! Vocês devem ser as novas moradoras do 81. Prazer, meu nome é Maria. Moro no 91 com meu marido, José.
Gilda e Dona Teresa fizeram o nome do pai com as mãos. Maria não entendeu nada.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Respirar e (se) (re) inventar

Talvez a situação mais difícil, a mais dolorida que um ser humano possa passar, seja a dor de nascer. Sabe, nascer, por a cabeça pra fora nesse mundo e respirar. E quando todos dizem que respirar é fácil, eu discordo. Totalmente.
Não porque eu me lembre de algo de quando eu nasci, não me lembro. Talvez me lembre inconscientemente ou por fotos que vejo da minha mãe ainda bem novinha e do meu pai com todos os cabelos pretos.
Mas digo com toda certeza que respirar não é fácil. Não é.
Respirar dói, colocar essa cara no mundo, enfrentar esse mundo do jeito que tem que ser enfrentado, sendo valente, dói.
Para mim acho que além do processo de respirar, de nos colocar como somos nesse mundo que estamos, o mais difícil é também saber respirar, sim. Não me venha dizer que é básico. Está bem, todos nós respiramos, o bebê quando nasce dói, mas respira sim. Mas saber respirar nos momentos de grande agitação é díficil.
E a agitação não precisa ser externa, de muita gente. É saber respirar nos momentos de agitação interna, quando tudo parece tão fora de lugar, tão desordenado, que duvidamos que o ar que estamos respirando seja ar mesmo, ou melhor, esquecemos como fazer para encher o tórax e a barriga de ar e ir soltando, lentamente, só o que está acontecendo agora.
É difícil respirar, sim. E mais difícil ainda respirar o agora. O bebê respira o que está acontecendo, esse ar denso que entra dentro dele e a fome, a vontade de comer e sem saber como. Antes, tudo tão fácil dentro da barriga da mãe, tudo tão pronto. E agora? O que fazer, como fazer? Se acalma naquele seio e naquele leite, respira devagar e pronto. Para o bebê dói o momento, a fome do momento, a cólica do momento, a fralda suja do momento.
Para a gente, dói o futuro, dói o que ainda nem aconteceu, dói não conseguir ficar com o momento, com  o que está acontecendo, isso dói. O caos externo fica pequeno, porque, apesar de tudo arrumando, milimetricamente organizado e limpo, com cheiro de limpeza, as frutas picadas, a louça lavada, a roupa dobrada e os livros organizados por ordem de autores, o caos interno de pensar sem parar no que ainda vai acontecer, desordena, deixa tudo no ar. Te faz doer ao respirar.
E é disso que quero falar, do peito vazio de ar, quando parece que lhe falta o mínimo para sobreviver que o caos te desmonta e te diz: essa é a vida. Não há peito materno. Não há o que ser feito.
Apenas partir, andar em buscar de reinventar o que já se sabe. Aquela folha de papel em branco que pode virar um poema, que pode virar um origami, que pode virar um texto. Nunca igual. Nunca.
E é nesses momentos que a única coisa que temos é a insegurança de se reinventar. É bem mais fácil ficar onde se está. Bem mais fácil.
Mas é importante nascer. E depois de respirar dolorido, quando te tiram do melhor lugar do mundo, é hora de renascer. E como isso dói. Acho que dói mais do que nascer porque ao nascer o esforço físico é compensado pelo leite quente, é compensado por dormir horas a fio. Mas renascer é difícil. Porque esse parto só depende de você mesmo. E de como você vai cortar o cordão com o que chamamos de "segurança" e finalmente, fincar os pés no chão. Pertencer, no caso, a você mesmo.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Caixa de Papelão

Quando eu era criança, tinha uma brincadeira que eu adorava: era pegar as caixas de papelão velhas e usar como escorregador em montes que tinham grama. Para mim, esses montes eram como pequenas montanhas. Geralmente, a gente encontrava desses na igreja que era construída numa espécie de buraco, entende?
Ao redor da igreja a gente tinha pequenas "montanhas" em que no topo (no máximo de um metro, o que já era alto para mim) a gente colocava o papelão rasgado, sentava em cima e descia escorregando. Era uma boa diversão infantil para uma infância onde não havia computadores, onde a gente brincava na rua e nas encostas das igrejas que ainda não tinham grades - hoje existentes para que os "pagãos" bêbados e excluídos não entrem.
Dessa forma, eu comecei a achar muito legal o uso do papelão e dessas caixas que vinham cheias de coisas dos mercados ou nos mercados.
Um dia, quando eu ainda era criança, a vizinha disse que a cachorrinha dela tinha dado cria e chamou aquele bando de crianças da rua para ver os filhotinhos. Era um mais lindo do que o outro. Depois de muito insistir, consegui que meu pai deixasse a gente ficar com um. Pegamos um preto e branco, muito bonitinho. Colocamos o nome de Snoopy porque ele parecia mesmo o cãozinho do Charlie.
O Snoopy era muito pequeno e ficava no banheirinho de casa numa caixa de papelão forrada de papel jornal. Tinha água e comidinha e a gente dava leitinho para ele.
Era legal chegar no quartinho e ver a caixa de papelão com o Snoopy tão pequenininho dentro.
E então que hoje eu descobri mais um uso para uma caixa de papelão.
Enquanto eu passava na rua, vi uma senhora simples, muito simples, pouca roupa e a que tinha estava um tanto rasgada. Ela tinha o cabelo sujo bagunçado pelo vento frio que fazia na tarde de hoje e estava a alguns passos da esquina onde passava, sentada na calçada. Era uma senhora com a pela negra, tão negra como parecia ser o mundo onde ela vivia.
Ela brincava e ria muito para dentro de uma caixa de papelão. Achei a cena no mínimo curiosa e me aproximei, passando em frente. E qual foi a minha surpresa quando percebi que dentro da caixa de papelão tinha uma criança, um bebê de alguns meses acredito.
Ele brincava com uma bolinha de papel em cima de alguns jornais.
E naquela cena, naquele instante debaixo de um Sol alto e um céu azul, me pareceu que o destino daquela criança se traçava. E eu vi que a caixa de papelão que usei para descer sorrindo as pequenas montanhas atrás da igreja, a caixa de papelão que vinha com as coisas de mercado, a caixa de papelão que usei para colocar o meu cachorrinho recém-nascido, agora também podia ser usada como berço para aquela criança que eu não sei dizer de sexo era. Nem se terá futuro.
A caixa agora estava com outra característica: de uma manjedoura muito simples mesmo, mas não onde a esperança nascia, mas onde ela agora morria.
E a mulher sorria para o bebê dentro da caixa de papelão enquanto as pessoas, apressadas em seus pensamentos vazios, passavam.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre os medos

Quando eu tinha lá pelos meus 8 anos, comecei a pensar no tempo como algo um tanto mágico e também impiedoso. Nessa época o meu maior medo era de que meus pais morressem. A ideia da morte para mim estava muito próxima porque eu tinha acabado de perder um tio. Não me lembro de tê-lo visto no caixão ou algo assim, mas me lembro de ter visto minha mãe muito perturbada. Era irmão dela.
Nessa época eu comecei a ter alguns medos muito estranhos, muito próximos de uma realidade que não existia, quer dizer, existia apenas na minha cabeça de oito anos. Tinha medos e manias. Medo de morrer apareceu como um dos pontos mais fortes, seguido como eu disse, de perder meus pais. Depois, medo de ladrão. Eu ficava acordada, só dormia depois que todo mundo dormia e ia conferir todos os trincos da casa que eu morava.
Era uma casa pequena, dessas bem pequenininhas mesmo. De esquina. O muro era baixo e eu costumava esperar o guardinha da rua assoviar pra dormir tranquila. Mas ao menor barulhinho eu acordava. E sentia medo de novo.
Quando a gente é criança e sente medo, o mais fácil é ir para a cama dos pais, acordar chorando, gritar ou algo assim. É simples ter medo quando a gente é criança e é fácil de perder esse medo também se a gente tem o pai e a mãe por perto.
Mas acho que na maioria das vezes eu não me dava o direito de sentir medo. O que eu mais sentia era culpa por sentir medo e uma sensação estranha de que naquela época, por minha mãe ter perdido o meu tio e por não ter mãe, eu ter que cuidar dela. E tinha o meu pai também. E tinha mais dois irmãos menores. Era muita gente para pouco eu. E muito medo em mim.
Mas quando se é criança, os medos estão muito mais próximos do que a gente inventa do que realmente a verdade. E é fácil gritar.
Mas quando a gente cresce, os medos são outros e não temos para onde gritar. O meu processo é um processo deveras silencioso. As minhas dores, amores, frustrações e desesperos são todos guardados quase que a sete chaves. Poucas pessoas sabem o que sinto de verdade. Poucas pessoas conhecem os meus medos.
Não tem cama dos pais para correr, não tem para onde ir e nem para onde gritar. A questão é saber como lidar com esses medos, com o tempo que insiste em ser implacável e com aquele dorzinha amiga que acompanha as pessoas solitárias.
Eu não sei direito o caminho, não ouço mais as vozes que gostaria de ouvir e os medos não são mais medos de crianças, de fantasma, de morte de ladrão. São os medos de adulto. Aqueles medos de viver de verdade.

Amanda

Sentou na varanda em silêncio. Os passos lentos iam da sala pequena até a varanda menor ainda, onde mal cabia uma cadeira. Passos lentos carregados por um chinelo de quarto fofo, macio, para ser usados nos dias de frio.
E naquele dia estava frio. Muito frio. Apesar de lá fora o Sol marcar mais de 27°, o coração de Amanda estava quase gelado. A varanda pouca era silênciosa como o que estava dentro dela, aquele silêncio profundo e dolorido.
Pegou um cobertor, voltou lentamente para a sala, fechou a porta e cortina escura e deitou-se. Olhando para o lado, deitada de lado, Amanda mal tinha força para chorar. Não tinha mais como viver naqueles 35 metros quadrados que 30 anos de trabalho público haviam lhe dado. Era triste ver que tinha sim, jogado a vida fora.
E por perceber isso, só agora, exatamente agora, no final do segundo tempo, Amanda se colocou em um silêncio perturbador. Não ouvia e muito menos atendia o telefone. Sua cabeça doía como se não tivesse dormido há meses e os olhos, com dor, não queriam enxergar o mundo novo que se abria ante seus desejos.
Estava triste, muito triste. Pesava-lhe a alma, os sentimentos, o coração. Não sabia em quem confiar, não tinha mais porque confiar.
Olhou-se no reflexo que a televisão de 45 polegadas exibia de volta. Demorou a levantar do sofá e lentamente colocou o copo vazio que estava no chão sobre a mesa.
A campainha toca e Amanda recusa-se a atender. Era o porteiro com uma carta.
- Para a senhora, dona Amanda.
Sorriu lentamente, pegou a carta e viu que o rementende havia lhe escrito à mão. Vinha da Bélgica.

Olá Amanda, tudo bem?
Espero que esteja tranquila.

Você ainda tem interesse em fazer o intercâmbio? Acabou de abrir uma vaga.



Abraços
Oscar

Amanda gargalhou, rasgou a carta e se voltou para o quarto.
Onde já se viu atrapalhar uma depressão com um convite desses?
Fechou os olhos e chorou. Copiosamente.
Já tinha seus 50 e tantos anos e a vida já tinha passado.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Estômago

Falar sobre o filme "Estômago" (Marcos Jorge/2008) não é uma tarefa fácil para mim, que sou uma fã absoluta dessa obra. Não tenho pretensão de escrever nada aqui em um nível de profundidade crítica cinematográfica nem nada disso.

Quero apenas apontar algumas situações me me chamaram a atenção nesse filme que facilmente entrou para a lista dos meus 10 mais de todos os tempos. Eu o revi pela décima quinta vez eu acho na última quinta-feira e para o meu espanto, o filme fica melhor a cada vez que assistimos. Como o bom "Sassicaia" que Giovanni, o dono do restaurante, apresenta para Nonato.

Bom, assisti esse filme pela primeira vez em meados de 2008, por sugestão de um amigo. A história, simplificada, é sobre Raimundo Nonato que vem para o Sul Maravilha buscar uma vida melhor. Chamado pelas pessoas de paraíba, cearense, nordestino, o que mais aparece é que a identidade de Nonato se constrói ao longo da história para se tornar o "Alecrim", que sobe ao poder devido aos seus dotes culinários.

Pois bem, Raimundo vem para o sul maravilha, começa a trabalhar num boteco, é chamado para trabalhar num restaurante e se apaixona pela prostituta Iria. Tudo perfeito, mas como todo processo digestivo que passa pelo estômago, o que começa na boca que engolimos no nosso dia a dia só pode dar em merda no final.

O filme acontece em duas histórias paralelas: Nonato chegando na cidade grande e Nonato chegando na cela da prisão. Um filme que convence sobre a ideia de como funciona um bom roteiro e como esse roteiro tem força e peso casado com as imagens. As duas histórias estão totalmente amarradas e fazem jus a todos os prêmios em festivais que ganharam.


Não é sem propósito que a primeira cena tem um close up na boca de Nonato, onde começa o processo de digestão.

Um filme ousado e brilhantemente construído, desde a direção de arte, até a construção do roteiro, que como diz o roteirista Lusa Silvestre, nunca termina. Baseado no conto "Presos pelo Estômago" do livro "Pólvora, Gorgonzola e Alecrim" de Lusa Silvestre, o filme é uma explosão de sabores da influência do neorrealismo italiano, onde o diretor, Marcos Jorge, acrescenta diferentes temperos.

A diferença se dá no contexto de que Nonato está sendo sempre oprimido, seja pelo patrão, pela prostituta/namorada e pela própria sociedade. A condição de vida de Nonato é sufocante como o quartinho em que ele dorme chegando na cidade grande, e ele parece também não fazer nada para melhorar a situação em que está. Mesmo quando consegue isso, Nonato se obriga a voltar na condição de subalterno.

No neorrealismo italiano a condição que se apresenta ao homem é de um situação real, no pós-guerra, com problemas de trabalho e de condições de vida, onde o olhar do homem se volta para a sobrevivência seja lá de que forma isso possa acontecer. Vemos isso, por exemplo, em "Ladrões de Bicicleta" (1948/Vittório de Sicca) onde há a necessida de sobreviver a qualquer custo, nem que para isso tem que se tornar um ladrão também.

Em "Estômago" a ascenção se dá de outra maneira, através do poder da gastronomia Nonato se vê como alguém que pode subir na vida, não na condição de um trabalhador, mas com o poder de dominar a cela onde vive supostamente por um crime que cometeu e que vamos conhecendo ao longo da história.

Nonato é um personagem real, fruto do realismo dos dias de hoje, da lei do mais forte numa selva a la "Plínio Marcos" que é a cadeia na qual se encontra, com o realismo das falas, da vida e de uma figuração primorosa, tal que de Sicca utiliza em "Ladrões de Bicicleta".

"Estômago" é uma digestão completa de uma realidade nua e crua que vemos por aí todos os dias. Um filme de dar água na boca e que é, na verdade, um soco no estômago.

Vale a pena assistir o filme e conferir a perfomance incrível de João Miguel como Nonato e Fabíula Nascimento como a prostituta Iria. Fora todos as outras personagens que habitam esse universo real e dolorido.

Não é sem propósito que a última cena do filme é uma bunda. É ali que o estômago termina seu trabalho.
Confiram.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Transeunte, o filme.


Hoje assisti "Transeunte", o novo filme do Erik Rocha, o filho do homem. Fui ao cinema pensando em ver um filme num estilo e numa estética completamente diferente do que assisti.
Vamos aos poucos tentar falar desse meu mais novo filme preferido. 

Quando li a sinopse (as sinopses nunca são boas, nunca. eu queria conhecer alguém que faça sinopses) eu li a história do Expedito, um senhor que transita pelas ruas do Rio de Janeiro. Até aí, tudo bem. Mas ninguém me falou que eu ia ver um filme quase mudo, onde o mais bonito seria o olhar do Expedito, que vive uma vida esperando, até certo ponto, por uma morte que o fará reencontrar a esposa já falecida.

O taciturno Expedito não ri nem quando a doce sobrinha lhe leva um bolo e um presente no dia de seu aniversário. Não agradece, não sorri na foto e tem um olhar de quase querer morrer de tédio, de tristeza, de falta de sentido na vida. Passa os dias a tomar remédio, ouvir o radinho de pilha com fone de ouvido e a dormir no sofá. 
Na boa, quem nunca sentiu isso uma vez na vida que atire a primeira pedra. Expedito é, até certo momento, aquilo que o Brasil, os brasileiros têm se tornado diante do resto do mundo: um transeunte, aquele que passa e não permanece, não deixa nada e não transforma nada.

Expedito vai então a um jogo de futebol no estádio e assim como um milagre do santo das causas impossíveis que tem o seu nome, grita, sorri e sente euforia durante o jogo. É aí que o filme muda completamente. Como se fosse um vinil antigo, com as músicas que Expedito mais aprecia, o filme muda do lado A para o lado B de um jeito tão poético e tão bonito, que até a imagem de um simples corte de cabelo enobrece a tela em preto e branco e a faz, sem que nós percebamos, ficar colorida.

Expedito toma um bom banho, corta o cabelo, compra óculos novos, descobre um bar em que as pessoas riem, cantam canções belíssimas de Lupicínio Rodrigues e tantos outros e descobre o prazer carnal. Não vou contar mais do que isso, senão o filme perde a graça.

O interessante mesmo é que Erik, o filho do homem (filho da fotógrafa Paula Gaitán e de Glauber Rocha), faz um filme em que o som e a imagem comandam os movimentos quase lentos de Expedito, bem como seu jeito desconfiado de andar. O silêncio no filme é ouro e dessa forma, o que temos em tela é um pote de riquezas sem fim. Num primeiro momento, nos incomoda aquele silêncio quase de morte de Expedito.
Depois, em duas horas numa sala escura vendo um filme em película em preto e branco o que temos são as palavras que acompanham as imagens em silêncio, sem precisar dizer o que o olhar do doce Expedito diz, lemos seus lábios, seus sentimentos, suas dores e amores de um jeito único. Como se estivéssemos próximos de um amigo. E em determinados momentos do filme, sorrimos sozinhos querendo simplesmente dizer, "ah Expedito..."

Bela música, uma montagem de tirar o fôlego, uma fotografia incrível, onde até mesmo a bolsa dos olhos de Expedito aparece e um preto e branco que ao invés de nos incomodar nos transporta para o mundo silencioso de Expedito, fazem desse filme do Erik uma "tela e transe".
Assistam se puderem, vale a pena ver essa película, essa preciosidade do cinema nacional, que vai muito além do que vemos "globalmente" nas telas do cinema do país. O cinema nacional é muito mais do que atores de novela. Acreditem.


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

uma pitada de vermelho

um dia me falaram que eu não podia pintar o céu de verde.
- O céu é azul, menina, não verde. Onde já se viu...
E eu gostava de verde e gostava de azul e de vermelho. E gostava de brincar com cores e ver um mundo todo colorido de cores diferentes.
Mas aos seis anos vi o meu céu pintado inteiro de preto. Inteirinho. Mesmo sem ter a palheta de cor, meu céu ficou escuro, escuro assim que nem mar bravo sabe?
E eu acordava à noite, entre cinco e quatro da manhã. (sim, para mim o cinco podia vir antes do quatro porque minhas horas estavam indo do fim para o começo). Acordava e ficava ouvindo o silêncio ensurdecedor que a rua tinha. Tentava a todo custo ouvir pelo menos o barulho das folhas da árvore dançando com o vento. Mas o vento, quando vinha, estava derrubando as folhas e não dançando com elas.
E isso me assustava.
Eu tinha medo e assustada, colocava minha cabeça no travesseiro como se assim conseguisse, num passo de mágica, ficar invisível. "com a cabeça aqui ninguém vai me ver".
E pim. Ninguém me via. Nem eu.
Foi então que vi que o céu pintado de preto ficava mais bonito se eu pintasse umas pintinhas coloridas. E assim eu ia vivendo minha vida e ia contando histórias e pintando o céu.
de verde não, que não podia.
Mas de vermelho, da cor do sangue e da vida que ainda corria em mim, podia.
E eu brincava com todas aquelas mulheres vestidas de branco e ria dizendo se teria que continuar tomando remédio.
- Sim, Larinha. Tem sim.
- Mas tia, isso dói.
- Sabemos Larinha, mas não tem outro jeito. Vamos imaginar que isso é um remedinho mágico que vai te deixar brincar de novo na rua e pintar de todas as cores a sua vida...
Então eu me encolhia na cama, sentia dores e tinha vontade de ir ao banheiro. Ficava um pouco de uma aguinha entrando dentro de mim. Eu não sabia o que era aquilo. Mas doía, injeção doía muito.
A minha mãe costumava pentear meu cabelo quando eu tinha seis anos. Ao sete, ele fazia carinho em uma cabeça careca, mas ainda assim, cheia de ideias. Minha mãe dizia que eu estava linda assim e que aquilo lembrava ela de quando eu era menininha e não tinha cabelos.
Mamãe segurava minha mão e dizia:
- Vai passar filhinha, vai passar.
E eu a via virando para o lado e segurando um soluço misturado com tosse.
Eu gostava da cor vermelha, era minha preferida.
Quando eu morri, aos 8 anos, meu vestinho era vermelho, bem vermelhinho. E eu vi sim que o céu era azul. Todinho azul. Pintado com todas as lágrimas que a mamãe chorou.
-Mamãe, olhe, estou bem. O céu é azul mesmo, como falou aquela tia....Mas olhe, vou pintar um pouquinho de vermelho pra vc...
E naquele dia o dia entardeceu vermelho. De um vermelho só.
Era um céu cor de Lara que eu tinha pintado pra minha mãe.
Ela sorriu.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Vícios e Manias

Tinha lá seus 40 anos. Vividos, bem vividos. Nunca se casara ou houvera vontade de casar.
- Sou de Deus - costumava dizer Judith. Com agá no final como gostava de afirmar.
Judith tinha vícios, manias. E alguns eram vícios muito interessantes de serem analisados.
Por exemplo, gostava muito de todos os dias, às 15 horas sentar-se diante da televisão e passar cola nas mãos. Esperava o tempo de um intervalo comercial para que a cola secasse e começava a arrancar as "pelinhas" da cola. Ia tirando a cola da mão e juntando um montinho na calça pra fazer uma bolinha com os dedos. Depois, ia até a cozinha e jogava no lixo certo, ou seja, o lixo orgânico.
Outra mania de Judith era passar palito de dente nas unhas. Fazia isso para tirar a sujeira, mas gostava mesmo era do prazer que o palitinho causava ao limpar e coçar as pontas dos dedos. Era um vício. Fazia isso toda segunda-feira, às 9 da manhã. Para a unha ficar limpinha a semana toda.
Um outro vício/mania que Judith tinha, e esse era ainda mais escatológico, era cortar as unhas dos pés e das mãos, separadamente, às terças e quintas. As unhas dos pés ela cortava pela manhã de terça e da mão às tardes de quinta. Ela separava as unhas e as guardava em potinhos. Era uma mania que tinha há muitos anos. Judith colecionava potinhos de unha.
Mas a pobre Judith também tinha uma mania mais conhecida: guardava em uma caixa grande as roupas e o cobertor que tinha da infância, materiais que a mãe de Judith, Dona Sylvia, com ipsilon mesmo, guardara com amor.
Toda vez que Judith estava triste, ia até as caixa e as cheirava e recordava o doce sabor da infância.
E em uma dessas vezes, Judith ficou tão triste e com tanta saudades da mãe, que adoeceu. Caiu de cama por três dias.
No quarto dia, quando levantou, Judith olhou para os lados e viu que estava tudo estranho. Não havia cortado as unhas, nem limpado com palitinho as mesmas e muito menos passado cola nas mãos e tirado as "pelinhas".
Então, com sua mania de vício por remédio, Judith era uma hipocondríaca máxima, tomou dois vidrinhos inteiros de calmante. E morreu.
Uma das manias de Judith era também não gostar da própria vida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A visita surpresa

Campainha/interfone.
- Pois não?
- É da casa do senhor Alberto?
- Sim. Quem gostaria?
- É um amigo dele.
- Um minuto por favor.
Alberto foi até a porta e avistou a pessoa. Chegou no portão e tão pouco reconheceu.
- Pois não?
- Alberto, eu vim te buscar.
- Sei. Para onde?
- Como assim para onde? Não está me reconhecendo?
- Não, assim de cara não.
- Não está vendo esse cajado e essa roupa escura?
- Sim, mas até aí tudo bem. Cada um se veste do jeito que quiser. Está fazendo cosplay de quem?
- Ai ai ai, senhor, dai-me paciência. Sou a morte. Agora vamos, abra esse portão e vamos embora.
- Sei. A morte? Sei. Olha, se isso é um tipo de brincadeira, está meio chato. E eu estou muito sem tempo.
- Alberto, escute. Vou falar pela última vez. Vamos embora homem! tem mais um monte de gente pra eu buscar.
- E se eu não abrir o portão? Vai atirar em mim?
- Puta que pariu, cada uma...Claro que não. Você já vai morrer de qualquer jeito, porque eu atiraria?
- Bom, então está bem, agora deixe eu entrar porque ainda tenho muita coisa por fazer.
- Alberto, façamos o seguinte então. Você não acredita que sou a morte e nem nada disso e eu estou ficando de saco cheio. Então, abra esse portão que explico tudo certinho para você. Estou sendo pago para isso mesmo...
- Arrá! E quem está te pagando? aposto que é o Moreira, aquele velho sem vergonha. Ele sempre faz isso no trabalho e adora aprontar. Vamos, me diga, quanto ele está te pagando?
- Moreira, que Moreira homem? Ah tá, o Moreira, o calvo. Sim, a hora dele ainda não chegou e não é ele quem está me pagando. E também não recebo em Euro, então vamos logo com isso, abra esse portão que eu entro e te explico. Se precisar, eu desenho pra vc. Sou ótimo nisso. Fiz um curso com o Henfil e com o Glauco. Precisa ver meu Geraldão. Enfim, abra esse portão.
- Entendi. Eu abro o portão, você me explica e me mata.
- É tipo isso, mas não é isso em si.
- E como é lá do outro lado?
- Que outro lado?
- Ué, depois da morte?
- Depois de mim? E como é que eu vou saber? Eu deixo vocês no portão, não sou eu que resolvo isso.
- Então você não sabe, é isso?
- Tá tá, eu sei. Mas não estou afim de explicar tudo agora. Abra logo esse portão e me deixe entrar que estou morrendo de sede.
- A morte morrendo de sede?
- ô Albertô, tá vendo o calor que tá fazendo, é de matar! e tá vendo essa roupa que estou usando? você acha que é fácil? Meu, estou colando aqui em baixo, derretendo. Minhas bolas estão grudando. Abre logo essa porra deste portão!
- E o que eu ganho em troca?
- Troca, troca! Esses seres humanos são de matar mesmo! Tudo vocês querem uma contrapartida! Ótimo! e eu estou de super bom humor e te digo: se me deixar entrar, fica mais uns minutos nesse mundo infernal. Está bem?
- Como assim, dona morte?
- Dona morte? Dona morte? Não está ouvindo a minha voz não? Seu Morte, caralho! Tenho voz grossa!
- É que a morte aqui é feminina.
- E eu não sei? Quando eu vim buscar aquele puto do Aurélio discuti horrores com ele...eu mereço mesmo! ter nome feminino! Mas vamos logo, abra esse portão e conversamos.
- Só depois de uma partida de xadrez.
- Jesus amado, Bergman agora? não! Sabe o quanto eu ouço disso por causa daquela cena que esse puto sueco do caralho fez no cinema? Ouço isso o tempo todo! E o pior, me diga: pelo menos vc viu o filme? Hã?
- Não, pior que não. Nem sei que é Bergman.
- Está vendo? as pessoas falam sem saber...Arf, isso me deixa pra morrer, quer dizer, pra matar alguém. Façamos então assim, ó, tá vendo, estou deixando o cajado no chão. Tudo bem, devagar, vai abrindo o portão....
- Você ainda não me convenceu que é morte.
- Olha, de verdade, você está me deixando puto. Tem um advogado que defendeu os interesses do Roberto Jefferson que está saindo de um fórum agora e eu preciso pegar ele, senão o safado fica até o fim da vida. Tipo o Maluf, aquele puto. Aquele filho da mãe já escapou tanto da morte...td por causa de uns caras assim que nem vc, que ficam me segurando. Então, se você colaborar, até deixo você ir junto pra ver como se faz a morte com os canalhas, agora abre essa porra.
- Estranho, muito estranho...
- Estranho o quê?
- Que você sendo a morte, ainda não me matou, só estou do outro lado do portão. Porque não me mata?
- Porque não é para ser assim. Você tem que abrir o portão.
- E porque não fez uma pegadinha?
- Está louco? Dar uma de Fausto Silva agora? João Kleber? Aliás, viu esse cara na Fazenda? Tá somando pontos pra ir logo....enfim. Abra essa merda.
- Olha, entendi, mas ainda não confio em você. Ao invés de abrir o portão apertando o botão lá dentro vou pegar a chave e ir até aí.
- Faça como quiser, como preferir.
Alberto pegou a chave e desceu os degraus até o portão, mas por um descuido, no penúltimo degrau tropeçou e caiu de cabeça na quina do muro. Morreu em segundos.
- Aí, tá vendo? Para que essa demora toda? Da próxima vez, vou pedir pra vir cupido nessa vida, ser morte é de matar- disse Seu Morte para o cadáver de Alberto, estatelado no chão.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O bilhete premiado

O homem se chamava José Pereira da Silva Filho, mas era conhecido por Pereirinha.
Pereirinha tinha lá seus 50 e poucos anos. Trabalhava num disque entrega. Aliás, em um não, trabalhava para vários estabelecimentos comerciais da cidade, da pequena cidade, onde morava.
Pereirinha não era o que podemos chamar de um homem bonito. Tinha um bom coração, era uma pessoa boa, daquelas que a gente percebe pelo olhar sabe? Mas não era exatamente um homem bonito. Nem muito agradável.
Se você desse trela, ele ficava horas no portão da sua casa contando das bandas de rock com as quais ele já tocou e fez turnê. Tudo uma mentira, é claro. Mas era legal incentivar o Pereirinha no seu próprio mundo da imaginação.
- Sabe que eu já fui baterista? É. de banda grande. Você nem imagina.
E lá ia o Pereirinha contar a história.
Contudo, Pereirinha era um homem solitário. Triste sabe? Morava com o pai doente. A mãe já tinha morrido há alguns anos.
Ele sentia muito a falta de uma namorada.
- Eu já tive várias namoradas, mas eu gosto de ficar assim do jeito que estou agora, na paz do nosso Senhor.
E lá ia ele para ele mesmo justificar a solidão.
Contudo, um dia Pereirinha teve uma ideia: o pai havia acabado de falecer, tinha isso uns dois meses. Deixara de herança para Pereirinha a casa e o imóvel do galpão, alugado agora para casa de ferragens.
Pereirinha então pensou, pensou e resolveu fazer algo até então inusitado para aqueles 50 anos: botou um anúncio no jornal e outro no rádio dizendo:

"homem bonito procura namorada. tenho boa aparência, amigos e um pouco dinheiro. procuro mulher acima dos 40, em forma e que queria dividir um teto com um homem romântico, sensível, porém, simples. sou um homem simples".

Mulheres da pequena cidade onde ele vivia e região se aglomeraram em frente à rádio e ao jornal, enlouquecidas atrás de um amor de verdade, atrás do mito Pereirinha.
Então que o pobre homem se esbaldou com as mulheres: loiras, morenas, japonesas, altas, gordas, magras. Pereirinha podia agora escolher.
Fez uma seleção: a mais cheirosa ganharia seu coração. Chamou as "meninas" para irem a sua casa e uma a uma ia cheirando o cangotinho.
Num gesto de amor e carinho, oferecia para as "moças" bombons por terem vindo.
Contudo, Pereirinha comeu todas as moças, transou com todas porque dizia que tinha que experimentar. O irmão mais velho de Pereirinha descobriu a algazarra do irmão, e devoto de São Sebastião, rezou um terço, colocou um copo de água pra benzer no rádio na oração da manhã e pediu a Deus que iluminasse a cabeça do pobre Pereirinha.
Chegou de surpresa um dia na casa de Pereirinha, só para pegá-lo no flagra:
- O que é isso, Pereirinha? Que bagunça é essa?
- Ganhei na loteria meu irmão! Bilhete premiado!
E saiu para o quarto com as gêmeas de 40 anos, que tinham os cabelos tingidos de loiro descolorado e usavam brincos gigantes azuis comprados na loja do 1,99.
As meninas pareciam estar ali, por, hã, amor ao Pereirinha, esse homem simples que naquela noite abusara no charme, passando creme rinse no cabelo e loção Phebo.
Pereirinha queria arrasar mesmo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Três Sombras

Louis, Lise e Joachim. Três nomes, uma história.
O livro "Três Sombras" (Quadrinhos na Cia, 2011) me chamou a atenção pelas belas imagens e pela história que passa não apenas pelos medos das personagens, mas que pelo que temos ainda de humanidade.
Louis e Lise vivem muito bem, afastados do mundo, numa casinha, que podemos chamar de "sapê" com o filhinho Joachim, um menino fofo, querido e alegre de cinco aninhos mais ou menos.
Amado pelos pais, Joachim passa os dias brincando pelas matas e com os animais. Até que um dia, antes de dormir, Joachim chama os pais e pergunta:
- Mãe, o que é aquilo ali?
Ao olharem pela janela, os três enxergam, ao longe, na colina, três sombras. Essas três imagens voltam todas as noites assustando e tirando a paz de toda a familia. A mãe, como toda boa mãe, tem uma visão e uma percepção e sai em busca de respostas.
Quando descobre que as três sombras vieram buscar Joachim, ela começa a se preparar para o morte do menino, mas o Louis, desesperado, parte em uma saga na tentativa de salvar o filho que passa por todos os nossos medos.
Ele atravessa o rio, enfrenta tempestades bandidos e tudo para que Joachim seja salvo. Mas o que ele não espera é que quem irá salvá-lo será o próprio Joachim.
Nessa busca toda, pai e filho vão se conhecendo, se reconhecendo e se amando desembocando num final surpreendente e lindo, digno de toda bela história.
A HQ poderia muito bem ser chamada de "A Outra Margem do Rio" que, numa paráfrase do grande Guimarães, atenta para nós que a viagem começa no interior, no nosso interior quando enfrentamos nossos piores medos nos colocamos dispostos a enfrentá-los.
Joachim, tão novinho, ensina isso para gente.
Cyril Pedrosa, autor francês, desenhou para Disney e tem um talento incrível para contar e compor histórias. Com tradução de Carol Bensimon (Sinuca Embaixo D'Água), "Três Sombras" entra para a galeria, na minha opinião, dos grandes trabalhos em quadrinhos, que mexem com nosso corpo, alma e mente. E com as sombras que temos dentro de nós.

Três Sombras

Autor: Cyril Pedrosa
Tradução: Carol Bensimon
Editora: Quadrinhos na Cia.
Páginas: 272
Preço sugerido: R$ 39,50

quinta-feira, 21 de julho de 2011

whisky

Bebia um gole de whisky. Já não sabia mais se com ou sem gelo que gostava. Era apenas whisky em seu copo e um vazio em sua alma.
A cabeça a mil, o corpo dava voltas em voltas de si mesmo sem sair do lugar. Na vitrola, um jazz riscado.
Acende um cigarro, desses cigarros velhos de filtros.
- Não há solução - resmunga.
Leva o cigarro à boca, dá uma baforada, lentamente coça os olhos com o polegar e o dedo anelar enquanto segura o cigarro com o indicador e o dedo do meio. Fecha os olhos.
Dá mais uma baforada no cigarro e perde de vista o desespero. Olha para o lado, para cima e para baixo. Faz não com a cabeça.
Pega o whisky com o polegar e o dedo anelar. Não tem mais dedo para segura o copo enquanto segura também o cigarro.
- O que você tem para me dizer?
Silêncio.
- Nada? Nada mesmo?
Silêncio.
- Porra Ana! Eu te amei, caralho!
Joga o copo de whisky já vazio no chão. Dá mais uma baforada no cigarro.
- Eu fiz tudo por você, Ana. Tudo. E é assim que você me agradece? Trepando com o menino? Um menino, Ana. Porra! vai pra puta que te pariu! ele tinha só 15 anos, Ana!
Silêncio.
Dá mais uma baforada no cigarro. Joga a bituca no chão e pisa com o chinelo de dedo.
Ana levanta e lentamente vai para o quarto. Andando devagar, ainda com a cabeça erguida. No caminho, para perto de Pedro, acariciando seu peito pega um cigarro no bolso da camisa.
- Acende pra mim?
Dá uma baforada, põe mais whiski no copo.
Pega lentamente. Suga o que sobrou do whiski com a lingua. Olha para o Pedro e diz:
- Me come.
Treparam na sala. Em cima da bituca de cigarro, dos cacos de vidro do copo de whisky que Pedro jogou no chão. Em cima das roupas usadas por Ana pra trepar com o molecote.
Em cima das lembranças e das dores.
Se amaram loucamente.
Terminaram e Ana colocou a camisa do Pedro. Amassada de raiva e suor. Pedro vestiu-se e de cueca foi ao quarto. Voltou com uma nota de 100.
- Toma, pega essa porra por essa trepada de despedida.
- Pedro, o que é isso?
- Pega essa porra, Ana! Vamos! sai da minha casa.
Ana levantou-se, vestiu a calça, arrumou o cabelo com o cigarro pendurado no canto da boca.
- Você vai se arrepender, Pedro.
- Vai logo, porra! Vai se fuder!
Ana deu mais uma baforada e saiu. Bateu a porta, terminou de colocar o tênis no vão do prédio.
Desceu as escadas, os 9 andares.
Pedro ia se arrepender do que fez.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Dicionário

Um dia, quando eu tinha lá pelos menos 7, 8 anos de idade eu comecei a ver o que era o mundo. Quer dizer, não é o mundo em si, mas perceber que existia alguma coisa para além do que era a minha casa na esquina, a escola, as brincadeiras, o lanches no recreio e o Progama da Xuxa. Na verdade, eu nem assistia muito a Xuxa, gostava mesmo era de ver Rá Tim Bum, onde até hoje fico feliz de ouvir um "senta que lá vem a história".
Pois bem, mas quando eu tinha essa idade mais ou menos eu já sabia ler. Achava realmente interessante a ideia de que uma palavra casada com outra, mais uma letra, mais outra formava uma frase.
Ainda que com uma certa dificuldade e um desconhecimento total do que eram determinadas palavras, eu lia algumas coisas. Coisas que algumas vezes não sabiam o que significava.
- Mãe, o que significa sexo?
- O que você está lendo, menina?
Era assim.
E então nessa época pediram na escola um livro novo, um livro que não tinha figuras e que tinha um monte de palavrinhas todas juntas no mesmo lugar: o dicionário.
Achei aquele livrinho, um Aurélio edição de 1987 (eu tinha meus sete anos aí) muito estranho, mas ao mesmo tempo muito bonitinho. Ele ficava em pé e tinha um cheiro de coisa nova muito legal.
Então eu ganhei um dicionário e pensei que agora sim, todas as minhas dúvidas estavam esclarecidas porque tinha ali todas as palavras do mundo.
Mas eu não sabia como usar aquele livro: viro de um lado, do outro? onde está palavra tal?
A professora, Tia Ana na época, explicou que as palavras seguiam uma ordem, que iam das letrinhas A a Z. A gente ia procurando aquela que a gente tinha dúvida do que era. O que a gente tinha que fazer era procurar no dicionário e ver como escrevia, o que significava e tals.
Aí eu pensei:
- Será que tem todas as palavras mesmo nesse livro? eu duvido.
Procurei em primeira instância a palavra merda. Nossa! E tinha!
Li a palavra encabulada, como se tivesse fazendo algo muito errado.
"merda: fezes, escremento".
Puxa, as palavras tinham outras palavras que significavam elas agora.
Então, transgredi.
Sem medo, peguei meu dicionário e fui para o meu quarto, sentei na cama que tinha uma boneca e duas almofadas e procurei: cu.
"ver ânus. Bunda".
Ainda ruborizada, abri o dicionário em ânus e lia rindo o que significava a palavra. Talvez com vergonha de mim, não sei. Como se alguém pudesse ver o que eu estava fazendo e pudesse dizer:
- Palavrão! você está lendo palavrão! Isso não pode!
Mas ninguém disse nada e eu continuei procurando todas as palavras do mundo, todas as palavras que eu tinha dúvida.
E eu achei o dicionário muito divertido. E comecei a procurar todas as palavras que pensava. E competia comigo mesma:
- Vou pensar uma palavra que nunca existiu, esse dicionário não vai ter.
Mas tinha!
Era algo mágico.
Foi então que com 7 anos procurei o significado da palavra morte. Meu tio tinha acabado de morrer e minha mãe tinha ficado muito triste. Muito mesmo. E eu também fiquei. Então tive que procurar o siginificado da palavra depressão.
E o que eu encontrei foi um olhar do meu pai e da minha mãe. E das tias da escola.
E foi legal de ver que no dicionário depressão também pode significar um buraco profundo, da terra mesmo,
ou do nosso coração quando a gente vê alguém que a gente gosta muito ir embora.
E assim eu achei que todas as coisas no mundo, no meu mundo, podiam ser nomeadas, podiam ter nomes, como se eu pudesse ter o domínio dos meus sentimentos, ou, ousadamente, pudesse saber o que estou sentindo, tendo que dar a cada uma das minhas sensações um nome: medo, dor, agonia, alegria.
Hoje a palavra que tenho é saudade.
O dicionário está explicando o que é, mas não sei, ainda assim, tem alguns sentimentos misturados com a palavra saudade que ainda não têm nome...
E dos palavrões, achei que o dicionário pode dar para gente uma gama imensa de palavronas, palavras bonitas, palavras que geralmente estão em desuso no nosso dicionário visual.
Então, achei o significado da palavra amigo. Achei ao longo da minha vida o significado dessa palavra. Eu não procurei no dicionário, achei no olhar das pessoas. E nesse final de semana achei mais três pessoas que cabem perfeitamente nessa palavra.
e eu nem precisei abrir o dicionário. Mas ele está lá na estante. Em pé ainda, cheio de palavras...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Café e cigarros num hotel barato

O tapete vermelho da entrada cheirava a mofo. A pouca luz denunciava que o pó sobre os móveis não tem sido tirado há algum tempo. Havia jornais da cidade da semana passada sobre a mesinha de centro, coberta com vidro trincado e cercada por três sofás de plástico verde. Pequenos sofás, encolhidos e miúdos. Pequenos como numa casinha de boneca.
- Está bom esse hotel para você?
Ela não respondeu. Continuou imóvel olhando o movimento fora do prédio iluminado com luz neon no letreiro. A letra H do Hotel estava falha e piscava como aquelas luzinhas de natal.
- Deve estar. Ela não falou nada. Veja dois quartos pra gente.
Entrou, sentiu-se cansada.
O banheiro no final do corredor era um convite para mijar em qualquer lugar do quarto que tinha apenas um vitral que entrava a luz de fora. Ar não entrava e o lugar cheirava a cigarro.
Deu vontade de fumar. Abriu um maço, pegou um, dois, três cigarros.
Bebeu o café barato e frio que estava à disposição no fim do corredor. Enquanto andava ia dando baforadas sensuais no cigarro pelo corredor, lembrando aos outros hóspedes que não era proibido fumar no local.
Voltou para o quarto, tirou os sapatos e pisou no chão sujo, no carpete que parecia ter areia. Esfregou os pés, fechou os olhos e sentiu prazer. Continuou a esfregar os pés no chão, na cama e nos lençóis que cheiravam a trepadas antigas.
Bateu na porta do quarto dele. Descabelada.
- Quer trepar?
Ele sorriu, botou a camisa branca e de cueca foi arrastando-a pelo corredor vermelho. Beijava-lhe a boca, o pescoço, mordia seus lábios tentando comê-la, sentir seu gosto. Apertou suas nádeas, seus seios e ela, num típico charme, o empurrava, tirava a boca de perto da sua enquanto desfilava sensualmente ia pelo corredor longo.
Passaram pela pequena sala escura com sofás verdes. Juvenal, o porteiro daquela noite no hotel sem agá, olhou, observou as sinuosas curvas da mulher que tinha ali uma sensualidade sem limites. Ela andava tocando o homem em suas partes íntimas. Com olhar febril a mulher ia andando para o quarto segurando um cigarro aceso nas mãos e o gosto de café velho na boca.
O homem estava estático encostado na parede amarelada pelo tempo e suja de gordura. Ela ia descendo mordendo-lhe o corpo todo, apertando e comprimindo o peito, a nuca do homem que gemia baixo.
Juvenal lambeu os beiços, tremeu e se masturbou olhando os minutos que cena durou. Depois, temente a Deus, se benzeu e voltou o olhar para a leitura do jornal da semana passada.
Enquanto isso, aquele homem e aquela mulher entraram no quarto e foderam a noite toda, o dia seguinte todo e a noite toda de novo. Entre cigarros e trepadas, ele sentiu que ainda a amava. Puxava-lhe os cabelos, rasgava-lhe a pouca roupa que tinha. A calcinha barata de algodão da mulher perdeu-se entre as fronhas e os lençóis amassados de sexo.
Entre uma trepada e outra, ele a matou sufocada numa tentativa de segurar o gozo. Apertou-lhe o pescoço.
Quando percebeu, bateu na mulher com força para que ela voltasse, mas ela não voltou. Então ele lambeu-lhe pela última vez, tocou os seios arredondados e firmes e fodeu com ela pela última vez.
Acendeu um cigarro e sentou na beirada da cama, esperando o que ia fazer. Pediu um café na portaria. Juvenal levou o café velho e frio e tentou olhar no quarto, mas só conseguiu ver os pés da mulher. Excitou-se.
Naquela noite, na entrada no hotel sem agá em luzes neon, outro casal chegava.
Juvenal tomava o que restou do café velho e frio.
Enquanto a mulher sentava no pequeno sofá verde e lia os jornais antigos, o homem de chapéu preto perguntou:
- Tem quarto vago?
Ainda tinha pó na mesa da sala. Os jornais eram mais antigos ainda.
- Quantos quartos? - perguntou Juvenal.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Sobre as pessoas e as coisas

Quero só dizer que quando eu penso em escrever algo, não é sem propósito.
Esse blog não tem a pretensão de ser algo além, de levantar bandeiras, nem de dizer o que é certo e o que é errado.
Contudo, a vida está aí na nossa frente, gritante e gigante. Muitas vezes morta, poucas vezes vivas.
E hoje, ao me deparar com essa foto de um menino de dois anos na Somália, parei de olhar para o meu umbigo por alguns minutos.

"Além de conflitos internos, a Somália e outros países da África Oriental, como Etiópia e o próprio Quênia, passam pela pior seca dos últimos 60 anos. Nesta terça-feira, a ONU chamou a atenção para a crise humanitária na região, onde a temporada sem chuvas atinge cerca de 11 milhões de pessoas, e fez um apelo a comunidade internacional.
- O custo humano desta crise é catastrófico. Nós não podemos nos dar o luxo de esperar - disse o secretário-geral da ONU, Ban ki-moon - Nós admitimos que temos que fazer de tudo para evitar que essa crise se aprofunde.
Um relatório divulgado em maio deste ano pelo Médicos Sem Fronteiras mostra como a realidade dos campos de Dadaab - composto por três acampamentos Dagahaley, Hagadera e Ifo, onde 9% das crianças chegam desnutridas e 60% das famílias vem com pelo menos um familiar doente.
Para receber a porção de comida - três quilos por quinzena, as famílias devem esperar, em média, 12 dias. Os utensílios de cozinhas e roupa de cama demoram mais de um mês. Durante este período, os recém-chegados precisam se virar em temperaturas médias de 50 graus, buscando alimentos no deserto e fugindo de animais selvagens, principalmente de ataques de hienas, frequentes na região".

Será que ainda existe gente no mundo?
Eu estou me questionando aqui para onde vamos e como vamos. Não tenho a pretensão de salvar a ninguém, muito menos a mim mesma.
Ninguém salva ninguém.
Mas eu quero questionar algumas coisas, como por exemplo a construção de estádios para a copa do mundo, o gasto excessivo do mundo em competições pífias de ver que é quem tem a melhor bomba atômica e em discussões aclamadas e acaloradas sobre a necessidade de se gastar papel tornando determinados cidadãos, cidadãos honorários de cidadezinhas de merda que só pensam em burlar regras e roubar dinheiro público.
Só quero perguntar até quando crianças de dois anos como essa continuarão a ilustrar as páginas de jornais, as vias da estação da luz e a esquina da casa de qualquer um de nós.
No que vale realmente investir?
Ninguém aqui está jogando a questão de ser jesus cristo, de fazer milagres, mas sim de repensar esse mundo, de repensar em que realmente damos valor e o motivo desse valor.
Esse menino chama-se Aden Salaad e tem mais um monte igual a ele esperando que alguém olhe, que alguém faça algo melhor do que ficar coçando em frente a televisão e dando milhões em realitys shows.
Peço que, por favor, ninguém tenha respostas, mas sim mais perguntas.
Se a gente se questionar, é meio caminho andado pra salvar a vida de Aden e de tantos milhões
Sejamos mais humanos, por favor.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sobre a 15 de Novembro

Na cidade que eu moro, Marília, tem algumas ruas com nomes de datas como por exemplo a 9 de julho, a 24 de dezembro e a 15 de novembro.
Ao longo dos anos me questionava porque algumas ruas tinham nomes de datas e não necessarimente de santos ou pessoas, tendo em vista que temos a Rua São Luís, a Rua Santo Antonio (onde tinha um sebo de livros que era minha diversão nas férias da infância), a Rua Pedro de Toledo e assim vai.
Pois bem que ficava me questionando isso e as ruas com datas são as mais antigas da cidade. Me lembro muito bem da 9 de julho com suas bancas de revistas abertas onde íamos quando a gente era criança com o meu pai.
Era interessante porque na época que eu era criança não tinha livrarias na cidade e nas sorveterias não existia o "self service". A gente chegava na banca que ficava na 9 de julho e comprava figurinhas, revistas de quadrinhos e ia na sorveteria que ficava na 24 de dezembro e escolheia a bola de sorvete. Um sabor ou dois. Quando a gente podia escolher dois, entre cinco, como côco, chocolate, creme, morango e uva, era um luxo.
Pois bem que a rua 15 de novembro sempre me intrigou. Eu achava a rua mais antiga da cidade, apesar de não ser. Com casas antigas e altas e muros baixos. E algumas pequenas lojinhas de comércio. Uma loja de armarinho, uma sapataria.
Era lá que tinha o mercadão municipal, com aquários que eu achava o máximo e com um cheiro de flor que até hoje lembra minha infância. E o pastel do Hirata onde às vezes, para comemorar o fim do semestre nas escola, meu pai e minha mãe levavam a gente. Pastel com coca-cola. O dia estava ganho.
E a cidade foi crescendo e eu também e novos espaços foram se abrindo.
E hoje, na 15 de novembro, nas esquinas, ao invés de pequenas lojas fechadas ou casas antigas com luzes intimistas acesas à noite e o mercadão iluminado, o que mais podemos encontrar são mulheres de programa, vulgarmente conhecidas como prostitutas.
As pessoas passam de carro e buzinam, gritam nomes estranhos, falam besteiras. Como se fossem animais. Como se as mulheres na esquina fossem animais. Os donos dos carros, gritando e com cervejas nas mãos dirigindo carros, geralmente são animais disfarçados de gente.
Mas a questão é que essas pessoas ficam na esquina, com roupas curtas, algumas vezes sentadas, algumas vezes dançando, outras vezes atendendo o cliente no carro.
E eu pensei o que leva alguém a se prostituir, a usar como ferramenta seu próprio corpo. Faça chuva ou sol, lá estão todos, na esquina. Penteadas, bem arrumadas, maquiadas.
À espera de um carro, um programa e um dinheiro. Ou um milagre de encontrar um Edward a la Julia Roberts em "Uma linda Mulher".
E quando me dei conta que estava pensando isso, pensei o elas podiam pensar das outras pessoas:
"o que leva alguém a estudar, fazer mestrado, acordar cedo todo dia e ir para o trabalho até as seis da tarde? o que leva alguém a prostituir seu cérebro?"
E eu conheço um monte de gente que faz isso, que prostitui o cérebro e a própria vida.
e então fui embora, ouvindo gritos de motoristas com seus carros importados que passam por lá sem ter o que dar para essas mulheres além de um xingamento gratuito.
Muitas pessoas passam por lá e enxergam esquinas vazias de seres humanos. Eu vi uma esquina cheia de pessoas como eu e você que nasceu, cresceu e deve ter tido sonhos na vida, medo e mais uma porção de outras coisas.
E quando as pessoas passam e gritam e xingam é como se a rua 15 de novembro perdesse seu nome à noite, perdesse sua identidade, numa leitura emprestada a novos prazeres, a novos nomes e datas das pessoas que ali estão.
E outra história, todos os dias começa ali a cada noite, a cada dia que não necessariamente o dia 15 de novembro.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Pausa


                                             Essa noite sonhei em lá menor
Era um sonho bonito, em preto e branco
Eu estava sustenido e você, bemol
Havia bichos, havia água
Havia o Sol

Quando eu sonho em lá menor
Eu acordo com uma tristeza sem compasso
Eu penso nos passos, na reza, no espaço que despreza
E então que fico com Dó
Dó de Si
E procuro rápido uma pausa qualquer, um lá menor Maior

E em adágio a gente corre pelo mundo
Alegre, ma no troppo
Tropeçando pelos copos dos bares, apertando cada colcheia em minuto

Sem bichos, sem medos
Sem desprezar qualquer segredo
Uma pausa mínima, breve

Sossegue, oras!
É agora, em Mi maior que podemos conversar
E eu posso dizer que...


Despertador.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Carta a um grande canalha

Caro senhor canalha,
tudo bem? esperamos que sim.

O senhor está sendo notificado através dessa carta porque realmente, pelo que consta aqui nos autos, o senhor foi um grande canalha, ou melhor, continua sendo.
Estamos lhe enviando essa carta para que o senhor saiba que usar as pessoas não é correto, para que o senhor tenha ciência de que mexer com o coração alheio e não cuidar desse coração é um declaração constante de que o senhor é um canalha, um sacana sem tamanho.
Percebemos aqui, nas considerações, que o senhor não levou isso em conta ao dizer certas palavras e ao tecer certas ações para que determinada pessoa tivesse apreço pelo senhor e se referisse ao senhor como um possível pretendente para as amigas e para a família, chegando, veja bem, até mesmo a dizer para os pais que estava com alguém.
O fato, pelo que me consta, é que o senhor foi avisado previamente pela pessoa de que não deveria agir assim e percendo que a pessoa estava sendo sincera, o senhor se tornou um total idiota ao deixar a informação entrar por um ouvido e sair pelo outro, intuindo que nada seria percebido por ela.
Tsc Tsc, senhor canalha. As pessoas próximas e até a própria pessoa referida no caso percebeu que o senhor não passa de um paspalho, um tremendo pastelzão de queijo sabe? daqueles molengas que qdo esfria não serve pra nada.
O senhor é, deveras, um tremendo calhorda, um filho da puta.
Então, tomamos a liberdade de vir até aqui lhe avisar disso.
Que o senhor vá para o inferno e que passe a vida toda assim, do jeito que o senhor sempre foi, um cara sem culhões, sem honrar o que tem no meio das pernas.
Tendo em vista que a única coisa que queria era se aproveitar da referida pessoa, ou melhor dizendo, em termos claros, exibi-la como um troféu para seus amigos ou usá-la porque precisava de algum favor, vamos sacaneá-lo até o fim da vida e pedir sempre, aos deuses da revanche que o senhor se apaixone por uma mulher bela, maravilhosa e que esta use o senhor de todas as formas possíveis, sendo que a mesma, em pouco tempo, se tornará uma baranga e uma grosseira incrivelmente astuta, conduzindo o senhor às profundezas do arrependimento. O senhor será obrigado a ver vitrines de sapatos no shopping na hora do jogo de futebol do seu time preferido. E em silêncio, não terá como reclamar, dizendo, "sim amor, aqui está o cartão de crédito".
Dessa forma, o senhor já estará fortemente atrelado a vida dessa pessoa, não conseguindo sair por muitos motivos, mas o maior deles, será a mãe dessa mulher por quem o senhor irá se apaixonar que irá lhe atormentar mais do que tudo nessa vida.
Que a revanche venha em dobro se o senhor não encontrar essa bela mulher, porque se não for esta a fazer algo, a lhe fazer sofrer, o senhor vai levar uma invertida de outra de quem tentará se aproximar que fará com que suas bolas, que já eram pequenas, se tornem bolinhas de gude que irão fazer com que qualquer mulher que o veja nu, tenderá a franzir a testa com cara de nojo pensando: "nossa senhora, o que é isso?"

Sendo esta apenas uma notificação, o que está por vir, será pior ainda.
Sem mais para o momento.

ps: ah sim, íamos nos esquecendo, a referida pessoa pediu para dizer que o senhor é um covarde por não ter sido sincero com ela e ter apenas afastado ela de sua vida sem nem ao menos comunicá-la. Também pediu para que lhe disséssemos que ela já lhe esqueceu. Alíás, não lhe esqueceu não, ainda se lembra do senhor calmamente dizendo que gostava dela. Então, ela resolveu que quem ia gostar dela agora era ela mesma. E que o senhor vá pra puta que te pariu, bem pertinho da sua mãe que é de onde você nunca devia ter saído.

*ontem uma amiga me ligou, chorando e me contou algum dos absurdos que o dito cujo fez e falou para ela. olha, uma coisa é você não querer mais a pessoa, tudo bem, é um direito seu. Outra coisa é você trair essa pessoa, e não é a traição física, com outro ou outra, é a traição moral de não ser sincero, de ser covarde e não conseguir falar, agindo a vida toda como se culpa fosse do outro. Isso vale para homens e mulheres. Ser sincero, ter dignidade é mostrar, ainda, que você é um ser humano. Minha amiga sofreu, assim como eu, você e mais um monte de gente que já pode ter sentido isso na pele. As notificações de canalhas, homens e mulheres, serão sempre marcadas. Pode esperar.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Domingos

O homem tinha nome de dia da semana. A mãe, muito crente, lhe deu esse nome por ter nascido mesmo em um domingo, como dizia a velha, "abençoado de Deus".
Domingos gostava de sair para ver as pessoas. Não fazia muito isso porque não tinha tempo. Entre cuidar dos avós e da mãe doente, tinha os afazeres de casa.
A época que mais gostava era o inverno, seguido nessa ordem pelo outono, pela primavera e pouco do verão.
- Chove muito e tem trovoadas, tenho medo - costumava dizer.
No inverno, Domingos gostava de se sentar ao sol e descascar uma tangerina. O cheiro da fruta ficava em suas mãos e mesmo que não comesse todos os gomos, ia até a cozinha, voltava para a cadeira da área e lá ficava descascando a tangerina.
- É a minha fruta preferida.
Domingos tinha uma paixão secreta, Irene, sua vizinha da frente. Moravam na mesma rua há alguns anos, desde que Domingos tinha 15 anos e Irene, 13.
Hoje, com quase 50 anos, Domingos achou que era hora de se declarar a Irene. Não que não tenha sentido vontade antes, mas nunca tivera coragem para tal ato.
Irene, por sua vez, mimava Domingos com bolos de cenoura e fubá, seus preferidos. E pegando tangerinas no sítio do tio Alencar para trazer para o amigo.
- Toma, trouxe para você - e saía com um sorriso tímido.
Irene também nunca se casou. Nunca quis.
- Isso não é para mim - dizia.
Então que Domigos colocou seu melhor terno, penteou o cabelo, passou um gel e com um vasinho de margaridas atravessou a rua.
- Boa noite, Irene.
- Boa noite, Domingos.
- Vim lhe trazer isso e....
- ....
- Bom, e não sei mais o que dizer.
Domingos suava frio, o cabelo milimetricamente penteado agora ficava colado no suor da testa que gota a gota fazia Domingos piscar, como se fosse um tique.
- Domingos, obrigada.
- Eu te amo, Irene, sempre te amei.
- ...
Ruborizada, Irene pediu que Domingos sentasse, lhe ofereceu uma água e lhe fez um agrado no ombro.
Domingos sorriu.
Mas sem que se desse conta, Marlenona, a amiga de Irene chegou.
- Olá Domingos.
- Oi Marlenona, vim aqui para....
 E então viu que Marlenona abraçou suavemente a cintura de Irene. Eram um casal e Domingos não percebeu.
Pediu licença, desculpa, sorriu e atravessou a rua de volta para casa. Estatelou-se na cama com os olhos esbugalhados, olhando para o teto do quarto, querendo ver além.
- Como não percebi antes? - questionou-se.
Era domingo à noite e Domingos ligou a televisão.
Passava Fantástico e o com a voz de Cid Moreira um novo quadro "Mistérios da Vida".
Domingos sorriu. E chorou ao mesmo tempo.
Seu coração estava dilacerado.
Pobre homem.

domingo, 26 de junho de 2011

Carne Viva

Quatro décadas de casamento. Quarenta anos juntos. Intensamente juntos. Pelo menos da minha parte. No meu corpo o cheiro dele exalava, brotava pelos poros. Já não sabia mais qual parte de mim pertencia a mim e se era eu.
O amava com todas as minhas forças, com todas as minhas dores. Amava-o como era e lhe perdoava os defeitos sorrindo, sem qualquer rascunho de dor na alma. Os defeitos dele também eram meus defeitos. Eram meus e parte de mim.
Traiu-me inúmeras vezes, incontáveis vezes. Com mulheres mais novas,  com mulheres mais velhas. Com pensamentos e com olhares lascados e enviados a esmo por onde ele passava.
Teve um filho, sim, comigo também. Mas com outra. Fez a pobre moça abortar.Ela obedeceu. Não quis o filho. E tão logo também não quis a moça.
Voltou para mim como tinha que ser. E as minhas dores latentes, ainda abertas em feridas rasgadas, cicatrizaram-se como por milagre. Ele estava de volta a minha cama, aos meus braços, meu pelos e meus carinhos.
Mesmo derramando lágrimas de sangue, sorria. O abracei, o amei e o acariciei como se não tivesse saído de casa nem por um minuto.
E sem um acordo, sem uma questão de piedade, ele me pediu a separação em um dia desses qualquer. Um dia que para mim estava nublado, cinza de cigarros fumados ao desespero espalhadas pela casa, pelo tapete, pelo carpete, pela cama.
Eu não tinha força para levantar. Minha aliança, nossa na verdade, doída, enraizada no meu dedo como se já tivesse nascido ali. Marcava o Sol de quarenta anos juntos. Ela não saía do meu dedo, a dor não passava.
Minhas lágrimas pareciam que encharcavam não aquele travesseiro cheio dele, cheio de cheiro dele, mas pareciam que alagavam minha alma e manchavam cada pedacinho de pele.
Eu era a partir dali uma imagem amorfa, deslocada de sentido.
Estava em carne viva, espaçada em um momento que parecia ser um mosaico do que fui. Pedaços por todos os lados. Cacos de mim que jamais iam se colar novamente.
Arrastei-me pelos cantos da casa buscando-o. Esses cacos não se juntavam, e quando assim o faziam não era mais eu, mais a minha pessoa, mas um pedaço de mim.
Escorei-me na parede tentando enxergar uma parte do espelho. Sai em disparada e fui pela cidade como quem tem um caminho. Ardendo em fogo, em dor em sangue.
Parei e vi um espaço de tatuagem. Eu precisava de uma nova dor.
Tatuei meus filhos, tatuei frases, tatuei minha alma.
Qualquer dor que não fosse mais a dor que sentia por não tê-lo.
E ele voltou no inverno com um sorriso e dizendo que me amava. Enxugou minhas lágrimas e me promete em cartas e afetos que não irá se perdoar de me perder.
Eu é que já estava perdida. Mas o abracei, o amei.
O amaldiçoei a estar condenado a mim. Ao meu corpo. Às minhas dores.

sábado, 25 de junho de 2011

da infância


em cima do muro, com frio e com o ipê florido.

um presente!

que legal!

curiosa brincando na cozinha! o fusquinha do meu pai atrás e a bola de futebol perto. rs

um pouco de sono com a mamãe.
e o título desse post, da infância, em letras minúsculas mesmo, porque a infância passa muito rápido. muito.
em frente de casa com o ipê florido. o ipê ainda existe a casa onde morei também. e eu brincava muito, de tudo e era tão legal.
o muro de casa era baixo, não tinha grades e nem cerca elétrica. eu não precisava ter medo, meu pai está abaixado atrás segurando meus pés para que não cair.
eu não tinha medo.
os medos que tenho hoje, depois que a gente toma consciência da vida, é que são difíceis.
era muito mais fácil antes. muito.
o ipê está florindo de novo. entre julho e agosto a rua fica cheia de ipês brancos.
e como a vida passa rápido. mas ainda bem que sempre tem a primavera. os ipês brancos e essas memórias que não cessam de dizer para mim quem eu sou e de onde vim.

na segunda foto eu estou brincando com uma cozinha de metal que ganhei dos meus pais. foi um presente e tanto e foi mta surpresa. mesmo.
pode ver pela minha carinha de alegria descobrindo os brinquedos.
me lembro de ter brincado muito nessa cozinha. muito.
cozinha pra cá e pra lá.
mal eu ia imaginar que hoje só sei fazer miojo. rs
mas foi tão bom, e é bom ter essas imagens aqui.
e principalmente no meu coração.
vejo poucas meninas brincando de casinha hoje. estão mais preocupadas em colocar maquiagens e vestir saltos.
eu usava uma sandalinha qualquer. e me sujava de terra que era a comidinha.
o fusquinha do meu pai está com a porta aberta lá atrás. eu dormia ali também quando dava soninho. e tem uma bola por perto também. eu brincava muito de bola também com o meu pai. 
e depois tomava banho. e dormia no colo da minha mãe.
e era bom.

era bom ser criança nesse época aí.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Léo

Quando a gente era criança, bem criança mesmo, a gente tinha uns amigos que a gente considerava primos da gente. Eles eram filhos da sobrinha da minha avó, que não era minha avó de verdade, porque essa morreu, ela era casada com o meu avô. Mas era como se fosse minha avó. E esses amigos, até hoje, comos e fossem meus primos.
A gente sempre ia brincar na casa deles. Era da casa da Larissa e do Lincoln. E era muito legal. A gente estudava em colégios diferentes na cidade, mas a gente sempre ficava brincando junto tanto de boneca quanto de escolinha.
Um dia meu pai colocou eu, meu irmão e minha irmã no carro e disse que a gente ia na casa da Larissa buscar eles pra brincar em casa. Achei o máximo.
- Que bacana ter amigos aqui - pensei.
A mãe deles, a tia Neusa estava grávida do Léo e eu me lembro vagamente da barrigona dela. E nesse dia que a gente foi buscar eles era porque a Larissa e Lincoln iam ficar em casa porque a tia Neusa ia ter bebê.
Puxa, um bebê, que interessante.
Eu devia ter mais ou menos uns 8 anos e começava a sacar que os bebês na barriga das mães não eram engolidos por elas. rs. Eles chegavam ali de outro jeito. rs.
Enfim que o mais importante era ter os amigos em casa e brincar.
A Larissa e eu ficamos conversando pra saber quem ia segurar o bebê quando ele chegasse. E é claro, por ordem de hierarquia, ela por ser irmã dele tinha o direito garantido.
A tia Neusa chegou em casa com o bebê Léo e minha mãe disse:
- O pacotinho chegou!
E eu fiquei feliz de ver.
Era um menino lindo.
Aí a vida fez a gente crescer e se afastou um pouco. Fui fazer faculdade e comecei a fazer Direito, na mesma classe da Larissa e reencontrei o Léo.
Tomei um susto.
- Léo, que lindo! como você cresceu!
E a partir daí eu comecei a chamar ele de Léo Lindo toda vez que o via e pedia:
- Dá aqui um abraço na tia.
E ele sempre era fofo e doce e me abraçava.
- Oi Li.
Então o Léo cresceu mais ainda e resolveu ir morar na Europa. E eu fiquei super orgulhosa e feliz.
- Que bom!
E hoje eu saí do meu trabalho e estava indo em casa almoçar pensando no que eu ia fazer amanhã, que é feriado e tals.
- Lídia, o Léo faleceu.
Eu sentei, fiquei branca e tive que tomar água.
Porque eu me coloquei no lugar na Larissa, no lugar da mãe dele e no lugar da minha mãe.
Morreu voltando no trabalho na Europa.
E eu vi que o mundo é vasto e dolorido. E até agora está um pouco difícil de respirar.
E não consegui pensar em outra coisa senão na Larissa e naquele pacotinho que chegou aquele dia.
E no tanto que a vida passa rápido e nos meus medos que tomaram parte do meu corpo assim que sentei na mesa, um tanto pálida, um tanto triste.
Espero que o Léo esteja bem onde ele estiver.
E que continue sendo lindo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Pó de café

Acordou cedo, como habitual. Olhara o relógio e o objeto insistia em gritar anunciando que já era mais de seis da manhã.
Levantou, banhou-se e colocou uma roupa nova. Havia comprado há alguns dias aquele jeans e ainda não tinha tido a oportunidade de usar. Colocou, olhou no espelho e gostou do que viu.
A não ser pelo cabelo que ainda faltava pentear.
Desceu as escadas pé ante pé. Não queria fazer barulho naquela manhã ensolarada de primavera. Sempre gostou da primevera. A luz nessa época do ano fica mais forte e mais bonita e as árvores pareciam saudar as pessoas ao derrubarem, em cada um que passava, uma flor.
Olhou o relógio novamente e sentiu que estava atrasado. Entrou na cozinha, colocou a água pra ferver e passou margarina no pedaço de pão de havia sobrado.
Preparou tudo e montou para passar o café.
O cheiro da bebida ia exalando pela casa, subindo num charme quase que sensual as escadas, conquistando os narizes verticalizado nas camas e os olhos apertados de um sono profundo, sonhando com um cheiro que não podiam ver. E esses olhos, ah esses olhos, foram se abrindo.
Colocou o café na xícara e bebeu. Quente e forte. Com pouco açúcar.
Manoela desceu e o beijou.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Está com gosto de café. De pó de café na boca.
- E você gosta?
- Como assim, se gosto? Claro que gosto de você.
- De mim não, do café, de sentir o gosto do pó.
- É diferente, mas eu gosto.
Então, ele a beijou com força, mordia-lhe a boca misturando o gosto do pó de café com o sabor da pasta de dente. Beijava-lhe a boca, o pescoço, as bochechas a testa.
Parou e olhou para ela. Fixamente. E então mordeu o pão e saiu para trabalhar.
Era um dia agitado que estava por começar.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O jacaré e a Baratinha

Era uma vez um lugar não muito distante daqui. Ali vivia Zé, o jacaré mais bonito de todo o pântano. Zé era um jacaré grande, bem grande com dentes enormes e um coração de ouro. Mas solitário. Muito solitário.
Zé nadava de um lado para o outro na lagoa procurando algas e pequenas comidas que pudessem alimentá-lo.
Ele não comia carne por convicção.
- Não é justo com os outro animais, eles também são meus amigos.
- Mas Zé, disse a gaivota Maricota, assim é a vida. Você precisa comer carne.
- Me recuso, Maricota. Isso não é para mim.
E então Zé saiu para passear. Foi tomar uma solzinho no barranco quando deu de cara com ela: Kiki, a baratinha mais fenomenal do pântano.
Zé já tinha ouvido falar dela por todos os cantos. Até os peixes comentavam:
- Minguado, você não acredita quem eu encontrei.
- Quem Peixoto? Kiki, a baratinha?
- Essa mesmo. Rapaz...
E se derretia em elogios. Zé ouvia tudo, mas nunca tinha visto Kiki de perto.
Quando se deu conta Kiki passava na frente dele, quase em câmera lenta, com aquelas antenas imensas que deixam o pobre Zé de boca aberta.
E a boca aberta de um jacaré é grande. Bem grande.
Kiki se assustou e ficou paralisada achando que Zé a fosse engolir.
- Por favor senhor, não me engula. Tenho muito o que viver ainda.
E Zé fechou a boca, sorriu lentamente e disse:
- Olá.
Kiki respondeu de volta, ainda trêmula:
- O o oooiii...
Então eles engataram um papo animado sobre o pântano, a vida e como se sentiam diferentes no mundo.
- Eu acho que sou muito grande e esquisitão. Imagine, eu não como carne, Kiki!
- Jura? É estranho isso mesmo. Mas por exemplo, eu tomo banho todos os dias, coisas que minhas colegas não fazem. E elas me acham bem estranha.
E foi um dia todo de conversa.
À noite saíram para jantar.
- Uma saladinha e um pouco de pele, por favor.
Jantaram, se divertiram e riram muito.
E de repente sentiram que estavam apaixonados um pelo outro. E foi bonito.
Zé passeia na lagoa com Kiki sobre sua cabeça. E Kiki sorridente diz:
- Que vento gostoso em minhas antenas!
É. O amor tem dessas.

terça-feira, 7 de junho de 2011

os espaços decor

Tinha uma casa pequena, bem pequenininha, mas extremamente organizada. a começar pelo chão que estava sempre "tinindo" de limpeza. chão limpinho e cheiroso. cheirava a maçã verde. a moça gostava era da parte que vendia produtos que dão cheiro bom na casa. produtos de limpeza bons e em conta.
a casa estava sempre arrumada.
tinha tudo no lugar: os brincos separados por cor, as roupas idem. na gaveta de calcinha, ai se as meias ficassem bagunçadas e atrapalhassem o bom andamento da organização.
na cozinha tinha potes, daqueles potinhos de plástico sabe? pra tudo. um para os biscoitos doces, outro para os biscoitos salgados. os farelos, farinhas de aveia e derivados cada qual no seu lugar. canecas milimetricamente organizadas por ordem de tamanho.
na geladeira tudo em ordem. das frutas todas lavadas aos iorgurtes higienizados antes de guardar. os discos, cds e dvds então, nem precisamos comentar. guardados em saquinhos plásticos separadamente.
os livros numa estante própria:
- os de quadrinhos aqui, cinema ali, literatura lá...
e assim iam os dias. milimetricamente organizados.
só o coração da moça é que estava partido. em caquinhos. pedaços bem pequenos que ela mal podia ver onde foram parar.
ah o coração....
esse não tinha como estar organizado.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A Família de Humanos ou Os homens da República das Bananas

Já era fim da tarde, uma tarde fria de inverno quando a símia Kiki, uma das macacas mais atuantes da comunidade, passava pela rua Dom King. Ela parou e observou que perto da ponte havia uma família de humanos. Um homem, uma mulher e três crianças. Como estavam cobertos de roupas não dava para identificar se as crianças eram meninos ou meninas.
Kiki, num gesto nobre típico dos símios ligou para a emergência no Corpo de Símios e logo Don Raul, um símio de 47 anos atendeu.
- Alô?
- Alô? Don Raul?
- Pois não.
- Aqui é Kiki.
- olá Dona Kiki, em que posso ajudá-la?
- aqui perto de casa tem alguns humanos. estou achando estranho isso pq a República das Bananas fica um pouco longe daqui...
- são quantos dona kiki?
- cinco.
- não se preocupe, eles estão tentando vir para cá, já que a República das Bananas está esculhambada. eles têm se reproduzido mesmo porque pelos estudos, eles têm um projeto chamado bolsa família que quanto mais gente tiver na família, mais eles ganham dinheiro. mas não se preocupe, são dóceis quando bem comprados.
- mas seu raul, eles podem transmitir doenças como egocentrismo, vandalismo e o principal, corrupção.
- sim, mas esses pelo que me parece, estão perto da ponte né?
- sim.
- então, esses não oferecem perigo. estão só procurando comida e lugar pra viver. já foram atingidos pela corrupção de outros.
- são tão bonitinhos, don raul.
- são mesmo dona kiki, mas cuidado, são humanos de qualquer forma.
foi então que dona kiki organizou no bairro um evento para arrecadar fundos e fazer uma casinha para aqueles humanos. todos os símios da comunidade se reuniram e levaram bananas e água para aquelas cinco espécies que eles sentiam tão próxima.
construíram também uma casinha simples e lá os humanos ficaram por um tempo.
toda vez que os viam sainda casa para ir a alguma lugar, diziam:
- tão bonitinhos, tão fofos...olhe, eles andam em duas pata! que lindinho...
o corpo de símios, liderado por don raul, estava alerta apesar dos humanos não apresentarem perigo.
mas foram feitas fotos e tinha comida todo dia e eles se foram se reproduzindo aos montes independente da qualidade de vida.
a humana chefe com cara de general dizia que quanto mais filhos tivessem, melhor, mais bolsa família teriam. e os humanos seguima a risca o que a líder do grupo falava.
até então que um dia dona kiki percebeu que aquela família de cinco pessoas tinha agora dez membros e se assustou. achou estranho aquilo, apesar do alerta de don raul.
ela então ligou novamente para o corpo de símios de bombeiros e avisou don raul que logo mais capturou aqueles humanos que viviam jogando lixo no chão, fazendo barulho e dançando um tipo de música que os símios dizem ser chamada pagode, ou sertanejo universitário. no cativeiro continuaram a se reproduzir.
tentaram capturar a líder dos humanos, mas foi em vão. elas estava em uma viagem junto com o outro líder barbudo que os humanos tiveram.
passavam agora pela europa onde tentavam esconder o problema de um humano sem escrúpulos que roubava merenda de uma creche.
dona kiki agora sentia receio de dar água e comida pra esses bichos.
- é, esses humanos são um problema mesmo - costumava dizer don raul.
então exterminaram a espécie.
depois de alguns anos, dona kiki levou o netinho dela, o pequeno King pra ver os humanos empalhados no museu. o garoto tinha curiosiodade em saber quem eram os habitantes da República das Bananas.
- olha vovó, o que aquele humano está fazendo com esse dedo do meio levantado?

*livremente adaptado de uma notícia de jornal que dizia em marília alguns humanos acharam saguizinhos em uma árvore no centro da cidade: "mas o bosque está tão longe.... como eles vieram parar aqui?" as pessoas dão água para os bichinhos todos os dias. as crianças de rua que ficam naquela mesma rua pedindo esmola ou um pouco de atenção ganham, às vezes, um real.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Carta para minha avó

Marília, 3 de junho de 2011

Oi vó, tudo bem? como estão as coisas por aí?
escrevo pra vc porque já faz mais de um ano que não nos vemos. adorava ouvir você contar as histórias do sítio e de como um tanto de leite virava manteiga e de como era seu pai, sua mãe e a vida em um lugar onde os problemas pareciam ficar longe. não tinha muita coisa no sítio né vó? mas tinha comida e tinha leite e tinha todo mundo junto.
era engraçado, isso, vó, porque me lembro de ir na sua casa quando era criança e a gente ia viajando de carro e o meu pai, que é seu filho, ia me contando algumas histórias. e eu ficava super feliz de ir porque eu ia me divertir dançando em frente ao espelho imenso que tinha no seu quarto. e o quarto tinha só uma cama e um guarda-roupa e esse espelho. não era tão grande. mas para mim era e eu dançava e você dançava um pouco também. escondida, mas dançava.
e a gente chegava lá e não tinha televisão, não tinha muita coisa. mas tinha um quintal com horta, uma casa pequena e um cheiro de bolo de fubá que espalhava pela casa.
sempre tinha bolo de fubá e café. e macarrão e frango assado que a gente comprava no açougue do Kojó. daí a gente ia tomar sorvete e você sempre pegava um monte. igual a Laura faz. pega um monte de comida. rs mas o impressionante é que você comia tudo. a laura também come. é sua neta mesmo.
hoje eu me lembrei de você. a marilú fez frango assado e sei que você gosta. ela estava usando aquele lencinho de crochê que você usava. e eu lembrei de você mais ainda.
e lembrei que teve um dia que você foi esquecendo da vida. e foi esquecendo e esquecendo e seu cabelo foi ficando branquinho branquinho. feito nuvem.
e sua mão, que é igualzinha a mão do meu pai, foi ficando enrugada e fraquinha. e você era tão forte, puxa...
e então eu vi que seu olhar já não estava mais aqui na Terra. seu olhar foi ficando longe longe. e você começou a esquecer de comer, a esquecer de dormir.
e um dia eu me despedi de você, mas você não foi embora.
e eu fiquei feliz.
mas teve um dia que eu acordei cedo, bem cedo, cedinho mesmo e você estava no seu quarto deitada, em silêncio. bem quieta.
foi então que peguei na sua mão e falei para você ir em paz.
e você foi. você já tinha ido na verdade. só ficou mais um tempo por aqui porque sabia que pra gente ia ser difícil passar o Natal sem alguém pedindo mais um pedaço de pernil.
e hoje eu me lembrei de você e pensei onde será que você poderia estar....e me deu uma saudade.
quando der, vó, aparece tá?
meu pai anda triste. talvez se você conversar com ele, dá uma melhorada.
deve ser saudades de você...
um beijo, fica em paz
Lídia

terça-feira, 31 de maio de 2011

A passagem

Segurava de forma terna a mão da velha senhora. A pobre agonizava lentamente havia dias. Não comia e não falava.
Antes a robusta senhora tinha uma vida feliz, ou melhor dizendo, tinha uma vida. Andava de um lado para o outro e tinha uma especialidade: fazer bolos de fubá. Os preferidos.
Contava causos e histórias do tempo antigo, da carochinha, de quando era criança e o pai não queria que estudasse, das galinhas que tinha que matar para a janta e principalmente dos bailes em que ia fugida de casa, da fazenda em que morava.
- era apaixonada por um japonês - costumava dizer.
foi então que foi envelhecendo aos poucos. lentamente. o tempo foi lhe dando uma cara nova, com uma cor de cabelo que parecia as nuvens do céu e um olhar que se distanciava cada vez mais do que estava acontecendo na terra.
ia aos poucos embora. já não sabia mais onde estava e se estava em algum lugar.
foi então que o homem segurou sua mão no hospital. rezou junto a velha senhora e disse que ela podia ir. que fosse em paz.
a senhora então, num relance abriu os olhos e olhou fixamente para a porta. o homem ao seu lado se moveu e ela virou para ele e sorriu. não disse nada. apenas sorriu.
e foi embora.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

O peso de um piano

- Bom dia - murmurou ao entrar na cozinha.
Carregava uma sacola de roupas sujas e um olhar cansado. Apesar do dia frio, aquele casaco fino de lã parecia esquentar uma alma que estava desolada.
- Bom dia - a moça respondeu. e continuou tomando seu café.
O homem então parou na mesa e sem se sentar encheu uma xícara de café, daquelas xícaras pequenas que se usa quando se faz um café para a visita. Pegou a xícara pequena e tomou o remédio.
Tinha esse costume. Tomava remédios com café. Ninguém sabia ao certo o motivo.
Deixou a xícara sobre a mesa e saiu. Não disse mais nada.
Subiu as escadas cansado, como se não tivesse dormido a noite toda. Aliás, dizem que dormiu na sala, sentado na poltrona. Sem cobertor. E foi dormir lá pelas tantas.
Na noite anterior, a moça ainda ouvia sua voz murmurando algo na sala, como se estivesse bravo. Por isso que no café da manhã a moça não disse nada. Não abriu a boca para falar uma palavra.
As palavras soariam vazias naquela momento. E o velho homem parecia que estava vazio também no olhar.
Era um piano muito pesado que levava nas costas. A vida lhe obrigou a ser assim.
tinha a testa franzida ao dizer "bom dia".
Sempre franzida entre os olhos. E até o Sol já tinha feito uma marca ali. 
Mesmo sem franzir a testa, parecia franzida, o que dava ao homem o aspecto de alguém sempre bravo.
Talvez com a vida, talvez consigo mesmo.
Acendeu um cigarro e foi para o trabalho. Era mais um dia que começava. ou no caso do homem cansado, não terminava.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O sabor das palavras

Desde que era criança, que aprendi a ler e a escrever, eu gosto de pensar em palavras. Não as palavras no seu sentido exato, mas o sabor que cada palavra tem. Eu gostava de ler tudo que me caísse nas minhas mãos. Desde bulas de remédios, até placas de homenagens a velhos conhecidos da cidade e placas de carros. As placas de carro eram algo curioso porque eu sempre fui péssima em matemática. Mas eu gostava de ver as três letrinhas e inventar uma frase com elas. Era legal, era interessante.
E eu gostava de dar nome para as coisas. Adorava inventar. Tudo tinha que ter um nome que eu achava legal, mas não necessariamente um nome de gente.
Gostava de inverter os nomes também pra ver como ficavam: chamava a cadeira de mesa, a mesa de armário e assim por diante. que cara tem a mesa? porque ela se chama mesa? se eu chamar ela de armário muda alguma coisa? quem inventou isso? e lá ficava eu horas pensando nisso.
e tinha (tenho) paixão pelos livros.
na minha infância a gente sempre teve muito livro em casa. quando eu me formei no pré e aprendi a ler, minha mãe me deu uma coleção inteira de livros e, assim como a caixa de gibis dos anos 1970 de meu pai, eram meus brinquedos preferidos.
gostava de ler e brincar com aquilo. de escolinha, do que fosse.
e os livros tinham nomes também. eram meus amigos.
mas quando eu digo que penso em palavras, acho que elas têm sabor.
digo isso porque sinto gosto quando falo algumas. por exemplo, acho que a palavra "marshmallow" tem gosto de nuvem. eu nunca comi uma nuvem, mas desde criança eu acho isso. e a palavra nuvem para mim tem gosto de algodão doce. e eu adoro repetir essa palavra: algodão doce.
talvez pela puxada do doce. ou pela doçura do algodão que a gente fala de boca cheia, com vontade mesmo.
e assim as palavras iam tendo gosto pouco a pouco. a palavra canela para mim nunca foi a canela do nosso corpo porque ela tinha um sabor e um cheiro. e é legal falar "canela". tem dois "as" o que faz com que abramos a boca duas vezes e fica bonito. gosto das vogais. e o gosto da palavra canela não era de canela, mas de um lugar bem bonito. doce também.
eu prefiro as palavras doces. as mais doces possíveis.
beijo é uma palavra que me encanta. acho que ela tem um gosto imenso e a sonoridade dela me faz bem. preste atenção: beijo.
é uma delícia de dizer.
e isso se deve a nossa língua portuguesa. experimente dizer beijo em inglês: kiss. que sem graça. "kiss". não tem gosto de nada essa palavra.
mas beijo tem gosto, sim.
assim como a palavra amor. amor tem um gosto bom também, que lembra um doce sendo feito no tacho, sendo apurado, porque você fala "amor" e o som continua no ar, como o cheiro do doce. "amor". a língua enrola, e a palavra continua.
uva é outra palavra que gosto muito. a gente diz puxando para dentro a palavra, como se estivesse sugando de alguma forma a fruta também. e daí a palavra fica mais gostosa ainda.
eu sempre senti as palavras como algo muito próximo a mim. como coisas que eu comia. devorava. sons que me encantavam. eu gostava de ouvir as pessoas falando olhando para a boca delas. como a palavra saía de cada um. que entonação a pessoa dava e como eu recebia. que som saía daquilo que eu dizia, que o outro dizia.
e ainda hoje sinto isso. determinadas palavras têm gosto. um gosto bom.
assim como a palavra saudade que tem um gosto de algo que ainda está dentro da gente. do nosso coração. um gosto doce. o mais doce possível. que constrasta com aquele amargo que fica no nosso peito quando lembramos de quem nos lembra essa palavra.
saudade é uma palavra bonita. tem gosto de abraço. de afago. de beijo. de marshmallow. de sorriso com olhos fechados e uma profunda puxada de ar, de fora para dentro. para completar aquilo que nos falta.
e assim, é doce. feito caramelo. feito aquela infância doce cheia de palavras comestíveis. gostosas.