sexta-feira, 25 de novembro de 2011

91

Dona Tereza completava naquela semana 75 anos. Católica fervorosa, Dona Teresa havia se mudado da casa onde viveu os últimos 50 anos para um apartamento. Essa foi uma imposição dos filhos de Dona Teresa, três homens, Carlos Henrique, João Henrique e Luís Henrique. Este último muito apegado à mãe.
Pois bem, a imposição da mudança veio com a morte do esposo de Dona Teresa, o senhor Augusto Henrique. Por tradição da família, todos levavam no nome o "Henrique" que vinha desde a época do avô de Augusto.
Mas enfim. Os filhos impuseram que Dona Teresa devia se mudar por segurança e também pelo apartamento ficar mais próximo da igreja Nossa Senhora das Dores que Dona Teresa frequentava.
- Olha mãe, disse Luís Henrique, aqui a senhora estará mais protegida e veja que bom, é perto da igreja.
Dona Teresa então se animou um pouco e sorriu pensando que dessa forma poderia ajudar melhor na paróquia e cuidar também da casa do padre que ficava na esquina do prédio onde Dona Teresa iria morar.
Mudou-se num final de semana. Apartamento 81, fundos. O apartamento dava para o quintal do prédio, de um verde sem igual e com duas palmeiras. Lindo o lugar. Dona Teresa ficou animada. Iria morar com Dona Teresa a menina Gilda, que tinha 25 anos, era virgem e namorava Marcelino. Senhor Marcelino no caso, que tinha lá seus 50 e tantos anos.
Gilda cuidava com gosto de Dona Teresa. Dormiam no mesmo quarto e conversavam horas a fio sobre os dons de Deus e a importância de se guardar.
- Eu casei virgem minha filha, em 1945 e até hoje homem nenhum, sem ser o meu falecido marido Augusto Henrique - que Deus o tenha...
- Amém - disse Gilda
- ...me tocou. É importante se guardar, minha filha.
Haviam se mudado há uma semana e ainda estavam nos preparativos da organização da casa, do guarda-roupa, da cozinha.
Foi então que naquela quinta-feira, em um dia de Sol forte e com uma noite de calor que Gilda, que tinha melhor audição que Dona Teresa ouviu um ruído no teto. Como não se lembrava que estava agora em um apartamento achou estranho aquele barulho e pensou que poderia ser um gato, um animal, algo assim.
Imediatamente se lembrou que morava agora em um apartamento e imaginou que a pessoa do 91 estivesse fazendo faxina.
Mas o ruído de arrastar os móveis estava apenas na parte do quarto e num local exato. Era a cama que ia e voltava do mesmo lugar. Gilda achou estranho e fez o nome do pai com as mãos.
Depois disso, Dona Teresa, que por mais que já tivesse idade estava ligada em tudo que acontecia perguntou:
- O que foi minha filha?
Gilda com medo de ser o satanás ou algo assim resolveu não falar nada e apenas disse:
- Reze Dona Teresa.
Dona Teresa começou a rezar e a rezar. Contudo, o barulho ia ficando mais forte, os gemidos iam aumentando e a cama ia se arrastando de um lado para o outro, um lado para o outro. E gemidos e gritinhos começavam a ecoar pela janela vindo parar no apartamento 81 de Dona Teresa.
- Absurdo!
Dona Teresa não quis pronunciar o que poderia ser aquilo. Pegou a vassoura e bateu com força no teto. Por dois segundos, os gemidos e os ruídos do 91 acalmaram, mas voltaram com força total em pouco tempo.
Dona Teresa e Gilda foram até a sala e fizeram uma oração.
Gilda, naquela noite, teve sonhos eróticos com Marcelino. Dona Teresa teve insônia lembrando de sua primeira vez com Augusto Henrique.
Mas ninguém disse uma palavra uma a outra. Apenas arregalaram os olhos e disseram ser aquilo um absurdo.
A única palavra que ouviram foi um bom dia no outro dia pela manhã no elevador.
- Bom dia! Vocês devem ser as novas moradoras do 81. Prazer, meu nome é Maria. Moro no 91 com meu marido, José.
Gilda e Dona Teresa fizeram o nome do pai com as mãos. Maria não entendeu nada.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Respirar e (se) (re) inventar

Talvez a situação mais difícil, a mais dolorida que um ser humano possa passar, seja a dor de nascer. Sabe, nascer, por a cabeça pra fora nesse mundo e respirar. E quando todos dizem que respirar é fácil, eu discordo. Totalmente.
Não porque eu me lembre de algo de quando eu nasci, não me lembro. Talvez me lembre inconscientemente ou por fotos que vejo da minha mãe ainda bem novinha e do meu pai com todos os cabelos pretos.
Mas digo com toda certeza que respirar não é fácil. Não é.
Respirar dói, colocar essa cara no mundo, enfrentar esse mundo do jeito que tem que ser enfrentado, sendo valente, dói.
Para mim acho que além do processo de respirar, de nos colocar como somos nesse mundo que estamos, o mais difícil é também saber respirar, sim. Não me venha dizer que é básico. Está bem, todos nós respiramos, o bebê quando nasce dói, mas respira sim. Mas saber respirar nos momentos de grande agitação é díficil.
E a agitação não precisa ser externa, de muita gente. É saber respirar nos momentos de agitação interna, quando tudo parece tão fora de lugar, tão desordenado, que duvidamos que o ar que estamos respirando seja ar mesmo, ou melhor, esquecemos como fazer para encher o tórax e a barriga de ar e ir soltando, lentamente, só o que está acontecendo agora.
É difícil respirar, sim. E mais difícil ainda respirar o agora. O bebê respira o que está acontecendo, esse ar denso que entra dentro dele e a fome, a vontade de comer e sem saber como. Antes, tudo tão fácil dentro da barriga da mãe, tudo tão pronto. E agora? O que fazer, como fazer? Se acalma naquele seio e naquele leite, respira devagar e pronto. Para o bebê dói o momento, a fome do momento, a cólica do momento, a fralda suja do momento.
Para a gente, dói o futuro, dói o que ainda nem aconteceu, dói não conseguir ficar com o momento, com  o que está acontecendo, isso dói. O caos externo fica pequeno, porque, apesar de tudo arrumando, milimetricamente organizado e limpo, com cheiro de limpeza, as frutas picadas, a louça lavada, a roupa dobrada e os livros organizados por ordem de autores, o caos interno de pensar sem parar no que ainda vai acontecer, desordena, deixa tudo no ar. Te faz doer ao respirar.
E é disso que quero falar, do peito vazio de ar, quando parece que lhe falta o mínimo para sobreviver que o caos te desmonta e te diz: essa é a vida. Não há peito materno. Não há o que ser feito.
Apenas partir, andar em buscar de reinventar o que já se sabe. Aquela folha de papel em branco que pode virar um poema, que pode virar um origami, que pode virar um texto. Nunca igual. Nunca.
E é nesses momentos que a única coisa que temos é a insegurança de se reinventar. É bem mais fácil ficar onde se está. Bem mais fácil.
Mas é importante nascer. E depois de respirar dolorido, quando te tiram do melhor lugar do mundo, é hora de renascer. E como isso dói. Acho que dói mais do que nascer porque ao nascer o esforço físico é compensado pelo leite quente, é compensado por dormir horas a fio. Mas renascer é difícil. Porque esse parto só depende de você mesmo. E de como você vai cortar o cordão com o que chamamos de "segurança" e finalmente, fincar os pés no chão. Pertencer, no caso, a você mesmo.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Caixa de Papelão

Quando eu era criança, tinha uma brincadeira que eu adorava: era pegar as caixas de papelão velhas e usar como escorregador em montes que tinham grama. Para mim, esses montes eram como pequenas montanhas. Geralmente, a gente encontrava desses na igreja que era construída numa espécie de buraco, entende?
Ao redor da igreja a gente tinha pequenas "montanhas" em que no topo (no máximo de um metro, o que já era alto para mim) a gente colocava o papelão rasgado, sentava em cima e descia escorregando. Era uma boa diversão infantil para uma infância onde não havia computadores, onde a gente brincava na rua e nas encostas das igrejas que ainda não tinham grades - hoje existentes para que os "pagãos" bêbados e excluídos não entrem.
Dessa forma, eu comecei a achar muito legal o uso do papelão e dessas caixas que vinham cheias de coisas dos mercados ou nos mercados.
Um dia, quando eu ainda era criança, a vizinha disse que a cachorrinha dela tinha dado cria e chamou aquele bando de crianças da rua para ver os filhotinhos. Era um mais lindo do que o outro. Depois de muito insistir, consegui que meu pai deixasse a gente ficar com um. Pegamos um preto e branco, muito bonitinho. Colocamos o nome de Snoopy porque ele parecia mesmo o cãozinho do Charlie.
O Snoopy era muito pequeno e ficava no banheirinho de casa numa caixa de papelão forrada de papel jornal. Tinha água e comidinha e a gente dava leitinho para ele.
Era legal chegar no quartinho e ver a caixa de papelão com o Snoopy tão pequenininho dentro.
E então que hoje eu descobri mais um uso para uma caixa de papelão.
Enquanto eu passava na rua, vi uma senhora simples, muito simples, pouca roupa e a que tinha estava um tanto rasgada. Ela tinha o cabelo sujo bagunçado pelo vento frio que fazia na tarde de hoje e estava a alguns passos da esquina onde passava, sentada na calçada. Era uma senhora com a pela negra, tão negra como parecia ser o mundo onde ela vivia.
Ela brincava e ria muito para dentro de uma caixa de papelão. Achei a cena no mínimo curiosa e me aproximei, passando em frente. E qual foi a minha surpresa quando percebi que dentro da caixa de papelão tinha uma criança, um bebê de alguns meses acredito.
Ele brincava com uma bolinha de papel em cima de alguns jornais.
E naquela cena, naquele instante debaixo de um Sol alto e um céu azul, me pareceu que o destino daquela criança se traçava. E eu vi que a caixa de papelão que usei para descer sorrindo as pequenas montanhas atrás da igreja, a caixa de papelão que vinha com as coisas de mercado, a caixa de papelão que usei para colocar o meu cachorrinho recém-nascido, agora também podia ser usada como berço para aquela criança que eu não sei dizer de sexo era. Nem se terá futuro.
A caixa agora estava com outra característica: de uma manjedoura muito simples mesmo, mas não onde a esperança nascia, mas onde ela agora morria.
E a mulher sorria para o bebê dentro da caixa de papelão enquanto as pessoas, apressadas em seus pensamentos vazios, passavam.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre os medos

Quando eu tinha lá pelos meus 8 anos, comecei a pensar no tempo como algo um tanto mágico e também impiedoso. Nessa época o meu maior medo era de que meus pais morressem. A ideia da morte para mim estava muito próxima porque eu tinha acabado de perder um tio. Não me lembro de tê-lo visto no caixão ou algo assim, mas me lembro de ter visto minha mãe muito perturbada. Era irmão dela.
Nessa época eu comecei a ter alguns medos muito estranhos, muito próximos de uma realidade que não existia, quer dizer, existia apenas na minha cabeça de oito anos. Tinha medos e manias. Medo de morrer apareceu como um dos pontos mais fortes, seguido como eu disse, de perder meus pais. Depois, medo de ladrão. Eu ficava acordada, só dormia depois que todo mundo dormia e ia conferir todos os trincos da casa que eu morava.
Era uma casa pequena, dessas bem pequenininhas mesmo. De esquina. O muro era baixo e eu costumava esperar o guardinha da rua assoviar pra dormir tranquila. Mas ao menor barulhinho eu acordava. E sentia medo de novo.
Quando a gente é criança e sente medo, o mais fácil é ir para a cama dos pais, acordar chorando, gritar ou algo assim. É simples ter medo quando a gente é criança e é fácil de perder esse medo também se a gente tem o pai e a mãe por perto.
Mas acho que na maioria das vezes eu não me dava o direito de sentir medo. O que eu mais sentia era culpa por sentir medo e uma sensação estranha de que naquela época, por minha mãe ter perdido o meu tio e por não ter mãe, eu ter que cuidar dela. E tinha o meu pai também. E tinha mais dois irmãos menores. Era muita gente para pouco eu. E muito medo em mim.
Mas quando se é criança, os medos estão muito mais próximos do que a gente inventa do que realmente a verdade. E é fácil gritar.
Mas quando a gente cresce, os medos são outros e não temos para onde gritar. O meu processo é um processo deveras silencioso. As minhas dores, amores, frustrações e desesperos são todos guardados quase que a sete chaves. Poucas pessoas sabem o que sinto de verdade. Poucas pessoas conhecem os meus medos.
Não tem cama dos pais para correr, não tem para onde ir e nem para onde gritar. A questão é saber como lidar com esses medos, com o tempo que insiste em ser implacável e com aquele dorzinha amiga que acompanha as pessoas solitárias.
Eu não sei direito o caminho, não ouço mais as vozes que gostaria de ouvir e os medos não são mais medos de crianças, de fantasma, de morte de ladrão. São os medos de adulto. Aqueles medos de viver de verdade.

Amanda

Sentou na varanda em silêncio. Os passos lentos iam da sala pequena até a varanda menor ainda, onde mal cabia uma cadeira. Passos lentos carregados por um chinelo de quarto fofo, macio, para ser usados nos dias de frio.
E naquele dia estava frio. Muito frio. Apesar de lá fora o Sol marcar mais de 27°, o coração de Amanda estava quase gelado. A varanda pouca era silênciosa como o que estava dentro dela, aquele silêncio profundo e dolorido.
Pegou um cobertor, voltou lentamente para a sala, fechou a porta e cortina escura e deitou-se. Olhando para o lado, deitada de lado, Amanda mal tinha força para chorar. Não tinha mais como viver naqueles 35 metros quadrados que 30 anos de trabalho público haviam lhe dado. Era triste ver que tinha sim, jogado a vida fora.
E por perceber isso, só agora, exatamente agora, no final do segundo tempo, Amanda se colocou em um silêncio perturbador. Não ouvia e muito menos atendia o telefone. Sua cabeça doía como se não tivesse dormido há meses e os olhos, com dor, não queriam enxergar o mundo novo que se abria ante seus desejos.
Estava triste, muito triste. Pesava-lhe a alma, os sentimentos, o coração. Não sabia em quem confiar, não tinha mais porque confiar.
Olhou-se no reflexo que a televisão de 45 polegadas exibia de volta. Demorou a levantar do sofá e lentamente colocou o copo vazio que estava no chão sobre a mesa.
A campainha toca e Amanda recusa-se a atender. Era o porteiro com uma carta.
- Para a senhora, dona Amanda.
Sorriu lentamente, pegou a carta e viu que o rementende havia lhe escrito à mão. Vinha da Bélgica.

Olá Amanda, tudo bem?
Espero que esteja tranquila.

Você ainda tem interesse em fazer o intercâmbio? Acabou de abrir uma vaga.



Abraços
Oscar

Amanda gargalhou, rasgou a carta e se voltou para o quarto.
Onde já se viu atrapalhar uma depressão com um convite desses?
Fechou os olhos e chorou. Copiosamente.
Já tinha seus 50 e tantos anos e a vida já tinha passado.