terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Brejo da Luz

Esses dias estive em São Paulo, a cidade mais agitada do Brasil.
O pior é que eu gosto desse agito todo. Gosto das luzes que a cidade apresenta, desse movimento sem fim de ir e vir e das possibilidades mil que as várias cidades dentro de São Paulo oferecem.
Certo. Quanto a isso, nada mais natural gostar de algum lugar que te fascina, te apresenta algo novo.
Dessa vez fui a lugares que não conhecia. Talvez dentro de mim mesma.
Resolvemos no sábado que iríamos visitar o Memorial da Resistência, na Estação Pinacoteca. Engraçado perceber como determinados espaços da cidade te lembram outros, tão bonitos e tristes quanto.
Fomos uma vez na Estação há algum tempo atrás, mas estava lotado e não conseguimos entrar. voltamos por um outro caminho e fomos aos poucos tropeçando nas pessoas, nas crianças. Esparramadas no chão. Caídas. Perdidas. Confesso que aquilo me assustou, não apenas no sentido do medo, mas na realidade tão nua, tão crua tão comum quanto troperçamos no cocô dos cachorros. Crianças, seres humanos tal qual os cocôs dos cachorros.
A Estação da Luz para mim tem um nome muito peculiar. Luz, iluminação é o que menos vi ali tanto da outra vez quanto dessa.
Para mim, o que havia ali eram sombras. Sombras de pessoas, de dignidades, de crianças. Um lugar lindo, histórico perdido num meio fio, num tempo em que o respeito ao ser humano, à própria vida não existe mais. Em meio a história, a história de tanta gente se perde. Se perde a história e os sonhos mais puros de cada um.
Saímos em uma saída do metrô que não conhecia. Não sabia como chegar à Estação. E aquelas pessoas, aquelas crianças, todas elas ali. Paradas, perdidas em craque, em cola em medo e desespero. Era como se tivéssemos mergulhado num túnel. Zumbis. Eram zumbis de si mesmos.
Me deparei com duas crianças procurando comida no lixo. O mais velho tenho pra mim que tinha no máximo seis anos. O outro não tinha mais do que três. Já sabe andar? então se vira.
e os olhos se fecham. Não há o que fazer. Por Deus, não há o que fazer. como assim?
Uma menina pedia para um homem, implorando quase, que lhe pagasse, seus olhos tristes e a boca entreaberta mostravam uma pessoa desfigurada, perdida numa inocência tardia, que teimava em insistir. Mas que já não havia mais. Bares, bebidas e sujeira.
Sobre o Museu da resistência eu falo um pouco depois, em outro post que quero muito discutir. Mas para mim, os passos apressados para chegar, os conselhos do guarda ao sair "cuidado meninas, aqui é perigoso", só demonstram que a tortura agora passou para um âmbito pessoal: para os nossos olhos.
Luzes e sombras num mesmo lugar. Pessoas apagadas com aquela luz em excesso e se arrastando pelas sombras.
E São Paulo fazendo quatrocentos e poucos anos hoje.
Fiquei de verdade pensando nisso. Porque saí da Estação da Luz no escuro. Com medo e pensando: o que se há de fazer? Como pensar isso num país que está montando a sua Copa do Mundo, Olímpiadas e nem ao menos se importa com sua sociedade? As pessoas estão morrendo. E não é lentamente. Estão num brejo.
e como diz o Chico Buarque, o Brejo da Cruz. Nem a Cruz salva mais.
Para mim é o Brejo da Luz. Porque essas crianças, essas pessoas estão lá, na história da cidade, numa das partes mais histórias de São Paulo e vão continuar sim, fazendo parte dessa história. Apontando para uma história que nunca sairá das sombras.
O brejo da luz. Da Estação da Luz.
E a novidade? Isso não é tão novo assim...

A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Parabéns São Paulo, Parabéns Brasil

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Odontologia

Floriano tinha 66 anos. 30 destes eram dedicados à odontologia.
- Porque uma boca saudável é tudo - costumava dizer seu Flor.
um dia um neto lhe pediu que comprasse uma bala.
- compra vô?
- balas fazem mal para os dentes, coma esta maçã que é melhor.
O neto olhou com desdém a fruta e disse:
- vô, o senhor não é feliz né? - e chupou a bala com gosto.
Seu Flor sentiu o sabor da infância naquele momento.

Mauro

Sr. Mauro, ou Maurinho como era conhecido em casa era um homem simples. Bom sujeito, trabalhador. Quando se aposentou do funcionalismo público resolveu viajar.
- Vamos, bem? - e chamou a esposa.
Esta era casada com ele há mais de 40 anos e friamente respondeu:
- Agora? Na semana que tem o capítulo final da novela? não dá.
E então Maurinho ficou triste. Nem os netos o animava mais.
- Deus, me mate - pedia todas as vezes. Mas nada acontecia.
Foi quando Maurinho resolveu ir conhecer o carnaval da Bahia. E lá conheceu uma preta folgosa, se apaixonou e nunca mais voltou.
A preta também via novela. Mas ele gostava dela mesmo assim.

A vida

um dia passei a questionar a minha vida.
Quem sou eu, de onde vim, para onde vou.
e então eu cansei e saí para jogar bola.

o joelho

uma noite, Paulo abriu os olhos e viu que o teto estava diferente. não reconhecia o lugar onde estava.
Olhou para o lado e uma mulher estonteantemente bela, nua, alisava carinhosamente seus pés.
- Amor? - disse ela sorrindo.
Paulo não tinha como acreditar naquilo. Quanto mais olhava para a bela mulher, mais pensava que era mentira.
- Seria um sonho? - pensou ele.
Tentou se beliscar. em vão. A única sensação que tinha era de uma ardência na perna esquerda. Não entendia bem porque, mas seu joelho pinicava.
- Onde dói, amor? - questionou a bela mulher que  Paulo não sequer sabia quem era.
- Aqui - mostrou o rapaz apontando o dedo esquerdo no joelho esquerdo, e fechando os olhos com a cabeça para trás, como se estivesse com uma grande dor.
Depois disso, morreu.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Garrafas ao mar

Quando éramos crianças, a família costumava viajar para a praia. E era sempre uma emoção porque, além da oportunidade de ficar todo mundo junto, tinha refrigerante de latinha (algo muito estrondoso pro nosso bolso) além de sorvete à vontade.
E era sempre bom. E a gente sempre ia com aquela expectativa de criança, de brincar na praia, de fazer castelinho, de pegar onda. E tinha milho verde e tinha sorrisos e tinha a gente dormindo junto depois da pizza.
Me lembro que meu pai quando via que estávamos chegando perto do mar dizia:
- Quem ver o mar primeiro, dá um grito!
e era uma festa de criança no carro e a gente se divertia e ria. E era bom.
E era só o que a gente como criança precisava. Quando a gente é criança a gente não tem muitas necessidades. E as que temos é facilmente supridas pelos nossos pais, pela comida ou por um pouco de atenção.
E a imaginação fazia o resto.
Mas parei para pensar esses dias quais são as nossas buscas, aquelas mais profundas e verdadeiras do nosso ser, sabe? Aquelas que quando a gente olha no espelho e está com 30 anos a gente pergunta:
- Onde foi que eu errei?
ou se olha e pergunta de novo:
- Onde foi que ficaram meus sonhos?
Pois é, e muitas vezes esses sonhos não são apenas nossos, do nosso desejo, mas um tanto quanto daquilo que buscamos no outro e não dentro de nós mesmo. e daí que é o problema.
a gente fica meio sem ação quando o outro não corresponde ao que queremos, ou ao que pensamos, porque o depósito de sonho tem que ser nosso e tem que vir de dentro de nós lutar por isso.
e então que bate uma tristeza e aquela lembrança bonita de se pensar:
- eu era feliz e não sabia.
oras, é lógico que você sabia, é só o tempo que escorreu tão rápido por suas mãos que não fomos capazes de anotar as diversas referências que fizeram da gente o que a gente é hoje.
e isso causa um estranhamento e uma dor muito forte porque é como se alguém tivesse nos atropelado no meio do caminho, antes da gente chegar onde a gente queria chegar e daí você tem que se contentar em ser o que é e ponto.
e o mais difícil é o passar das horas, é saber ouvir e compreender as diversas limitações que possuímos. E então escolher.
A escolha é muito difícil, muito mesmo.
Porque veja bem, quando a gente é criança e vai para a praia com os nossos pais, a gente não escolhe muito o caminho a seguir, é aquilo e pronto. Mas quando a gente cresce e tem que escolher entre amar e ser amada, entre ir e ficar e entre ser o que se é e o que outro gostaria que fôssemos é que dói.
e me lembro de uma vez na praia meu pai contar algumas histórias sobre a forma de se comunicar com as garrafas ao mar, escrevendo no papel alguns segredos, pedidos de socorro, enfim.
e então que a gente pensou nisso, de escrever alguma coisa em um papel, colocar numa garrafa e jogar ao mar. eu não me lembro bem o que escrevi, mas foi divertido de fazer.
jogamos a garrafa no mar e perguntei ao meu pai:
- será que alguém vai achar o que escrevi, pai?
e ele me disse que o mais importante era tentar.
e o sol se pôs várias vezes depois dessa conversa. e os anos passaram e a gente não vai mais para a praia. e nem grita quando vê o mar.
mas isso tudo são escolhas. bem como quando escolhemos o que escreveremos nas marcas da nossa pele e na nossa história de vida.
e quando olhamos a direção do mar para onde iremos mandar a nossa garrafa cheia de histórias, estamos fazendo uma escolha.
e isso é o mais bonito: saber escolher o caminho para onde vai jogar seus sonhos e ter a esperança de que quem possa vir a achá-lo seja você mesmo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Genésio









Há tempos que eu estava devendo um post bacana, desses que a gente pode dar risada, pensar e inventar. Bem, aqui está ele. Os desenhos do Genésio foram feitos pelo meu amigo passarito Thiago, que trabalhava comigo no Jornaleco de La Matina, nos idos de 2009-2010.
O Thithi e eu de cara meio que viramos irmãozinhos. Dividíamos a sala do jornaleco nos corredos insalubres por onde o ar não entrava, mas a chuva sim. rs.
Íamos direto almoçar no "tio da refeiça", ou um botequinho de comida caseira em frente ao jornal onde tínhamos severas crises de riso e onde inventamos mil personagens e ideias.
Era sempre muito bom estar com ele porque eu me divertia muito. A nossa sala no jornal era a mais diferente, tinha sempre recadinhos, desenhos e bilhetes pela sala toda. rs.
enfim.


Thiago e eu no lançamento da Café Espacial #8 em Marília
 Eu saí do jornal mas o Thithi, meu amigo passarito continua lá e por ser amigo da minha irmã também estamos sempre que podemos juntos dando risada de alguma coisa.
Foi então que ele me chegou com esse personagem de cupido, e eu de cara disse: meu, tem que ser genésio o nome dele.
Nem sei porque falei isso, mas achei que combinava demais com essa cara irônica e mal humorada de um cupido meio esquisito....
Quando eu entrei no jornal a minha ideia era fazer do Caderno de Cultura, ou Caderno 2 como é chamado, um caderno diferente, cheio de informações novas, com muitas coisas ricas culturalmente falando. A minha primeira ideia era colocar quadrinhos, pessoas de Marília que fizessem quadrinhos e o Thiago era um deles que estava pensando. Bem como um projeto diferente, onde ao invés de foto eu pudesse usar ilustrações e desenhos numa leitura mais clara e limpa dos fatos culturais da cidade e dos artistas locais.
Claro que foi um sonho, imagina. Uma cidade de interior, com uma mentalidade mais interiorana ainda trazer alguma dessas referências para o jornal. Levei muitas na cabeça, é claro. Mas nunca deixei de pensar o tanto que seria legal.
E então no ano novo o Thithi foi em casa e me levou os desenhos. Passamos uma tarde imaginando a personalidade do genésio, quem ele seria e como seria. E foi então que acabou saindo algumas ideias e alguns desenhos que você pode ver aqui.
A maioria é claro, são ideias do Thithi, porque quem é talentoso é e pronto. Mas eu adorei ter participado disso e ter feito parte de pensar o Genésio.
O contexto lúdico, a forma de brincar e a liberdade dos traços, das falas marcam para mim que devemos ousar algumas vezes, brincar com o que não conhecemos.
Espero que vocês gostem e deem nem que seja uma risadinha. Afinal, o Genésio é um puta dum sacana e pra ele fazer você se apaixonar feio, ou por alguém muito feio, o que é mais a cara do Genésio, é uma flecha.

domingo, 2 de janeiro de 2011

a carta

*extraído de "cartas a ninguém". de Ana Lemos. 

Precisamos conversar, quer dizer, melhor, talvez eu que precise falar. ou ouvir. não sei. não vou te cobrar. não vou. mas eu preciso ouvir de você o que foi que aconteceu com a gente. preciso ouvir, tá entendendo? eu preciso ouvir de você que a culpa não foi minha. se é que existe culpa numa situação como essa, numa situação em que mais latente do que isso, seria o sentimento que tenho por você.
escuta, o que foi que te disse quando te beijei pela primeira vez? ou você por acaso já esqueceu que me beijou algum dia? eu te disse claramente: eu não consigo confiar nas pessoas. eu não consigo. mas quero confiar em você. eu gosto de você.
e te beijei. te abracei. e dormi com você. dias e noites. e você me viu inteira, examente como eu sou, com os meus medos, meus desejos e minhas vontades. eu estava lá, à vontade, inteira pra você. e o sentido aqui não é apenas carnal. é de vontade de estar junto. de querer bem. de estar bem.
eu me sentia bem com você, eu me divertia. eu ria. eu ficava leve.
me diga, pra que isso? pq vc me afastou assim?
eu vi no último telefonema que te dei. frio, distante quase um conhecido. mas não era mais você. o cara por quem eu me apaixonei, veja bem, me apaixonei, não está aqui na minha frente agora. é outra pessoa.
sim, é bom que as pessoas mudem, mas quem foi que eu conheci? eu te projetei, é isso? é ficção? tá, te inventei agora. foi isso.
entendi.
por favor, me diga o que eu fiz. foi culpa minha? existe culpa? de quem foi?
que porra é essa de amor que me faz doer? que me faz sentir sua falta?
e eu fico horas vendo o email, lendo e relendo, atualizando pra ver se chega uma mensagem sua. uma carta. um sinal de vida.
seu covarde.
isso que você é. um covarde.
daqueles grandes.
eu te disse que ia me apaixonar. eu te disse. e você insistiu e pronto. ponto final. me esqueceu. como aqueles brinquedinhos que a gente cansa quando é criança e procura outro.
escuta aqui, seu merda. eu não sou um brinquedo. eu naõ te inventei e eu não criei vc sozinha. eu te vi do meu lado. eu te beijei.
e eu pedi pra vc não me machucar, eu pedi.
mas sabe o que é? o pior não é vc ser esse covarde, esse grande filho da puta que vc foi. o pior é que eu não posso ficar aqui me lamentando, pedindo esmola, me alimentando dessas migalhas que vc está me dando. não.
a errada aqui sou. e eu te digo mais, vc não vai me quebrar. cada palavra que eu escrever é uma forma de tirar vc de mim e da minha cabeça. e cada vez que eu pensar eu vc, cada vez que eu lembrar de vc, os meus melhores pensamentos voltarão para mim.
eu não vou deixar você invadir meus pensamentos assim. não vou.sabe pq? pq eu não mereço isso. não mereço.
não mereço saber que vc está com outra e vc beijá-la na minha frente. não mereço um homem como vc, sem culhões que naõ soube ao menos o que é respeitar o sentimento de uma mulher.
não não. não me venha com a desculpa de que o problema é vc e não eu. isso naõ cola.
aliás, cola sim. vc é um problema. pra vc mesmo.
todos aqueles dias que tivemos, todos os carinhos, tudo. eu vou jogar num saco. ou melhor, vou escrever. e vou queimar.
você é um covarde de fazer isso. um covarde.
às vezes a gente convive anos com uma pessoa e não a conhece de vdd.
eu vou buscar conhecer a mim mesma. e vc, o que vc vai fazer com td isso é problema seu.
só quero que vc saiba que aqui dentro você não entra mais. de maneira alguma. os meus pensamentos estão fechados e ao colocar vc no papel e queimar, vou queimar vc também.
não me venha com essa ideia de que está confuso. enfie a confusão no seu rabo. e nem de que gosta e quer ficar sozinho. vai se danar.
a vida é muito maior que isso e dessa marca que vc deixou em mim eu vou fazer uma história. das mais belas. e vou estagnar esse sangue que jorra daqui de dentro. deixe estar. isso um dia há de parar de doer.
e daí meu querido, quando isso acontecer, já viu. eu vou sorrir. e lentamente vou ser feliz. ou triste. mas vou ser eu de novo. e não o que você esperava que eu fosse.
e não vou lembrar dessa dor. pq as dores passam. a gente lembra que sentiu, mas não sabe mais como eram. elas se fecham. elas param de fazer com que nossos olhos fiquem marejados.
eu não tenho mais medo, tá? não tenho.
eu me humilhei quantas vezes pra vc me explicar algo e vc se calou. fechou os olhos, abaixou a cabeça e se calou.
e eu quero duas coisas de vc. apenas duas.
uma é a sua distância.
e outra: me devolve o que eu tinha de melhor que era a capacidade de confiar em alguém. em achar que o amor realmente valeria a pena.

sábado, 1 de janeiro de 2011

o dentista

ele entrou e com um sorriso disse: - oi. eu não respondi, apenas sorri lentamente e abaixei a cabeça. era a primeira vez que o via no meio daquela multidão toda que é um consultório de dentista. sentou perto, pegou um livro que tinha na bolsa e começou a ler. raramente olhava para o lado, de tão concentrado que estava na leitura. eu fingia que lia uma revista. folheava as páginas olhando de rabo de olho para a poltrona a minha esquerda. ele sentou perto do bebedor e o máximo que dizia era: - desculpa. dizia porque sentado perto, todas as pessoas que tinham que beber água tinham que pedir licença para passar. moreno e com um sorriso lindo. tinhas os cabelos meio assim sabe? jogados e bagunçados. havia mais umas 4 pessoas na sala, naquele dia a consulta atrasou. o ar condicionado quebrado denunciava um certo calor na sala, o que me conduzia a tentar dizer pelo menos uma frase: - tá calor né? mas não disse. senti vontade de dizer, mas não disse. ele continuava a ler o livro e eu a folhear a revista. de um lado para o outro. abaixei a cabeça e comecei a ler a reportagem que falava sobre a dieta saudável. isso está bem na moda. - você tem horas? levei um susto. - hã? - horas? você tem? ele estava me perguntando as horas. não sei ao certo quantos segundos eu demorei pra responder. ou pra ver que o relógio estava no meu pulso esquerdo. - ah sim, três e quinze. - obrigado. tá calor aqui né? - hã? não sei se deveria estar no dentista aquele dia porque ele deve ter pensado que eu deveria estar no otorrino. garota meio surda. - ah sim. isso lá está. calor. - prazer. carlos. - lia. - rotina lia? ou usa aparelho? - rotina. mas já usei muitos aparelhos. nossa. - (risos). eu vou fazer o teste hoje pra usar um também. - legal. Legal? como assim legal, porra? quem em sã consciência fala isso para alguém? silêncio. ele voltou para o livro e eu para a revista. mas os olhares começaram a se cruzar lentamente. entre um olhar e outro, ele abaixava os olhos e eu os meus. os olhares não se encontravam. só as vontades e pequenos espamos de sorriso. - lia. entrei e sorri para ele. na hora de sair ele estava ainda sentado lendo o livro. e eu passei rapidamente por ele pra pegar água. - desculpa, lia. ele disse. e eu: - não foi nada. e num lapso, falei: - quer sair pra um café? - fiquei vermelha. como eu tive coragem, meu deus? ele sorriu, agradeceu e disse: - você me espera depois da consulta? - sim. - carlos - a atendente o chamou. deixou o livro no sofá, sorriu e entrou. eu fui ao banheiro, arrumei os cabelos, a blusa e o sorriso. o banheiro era daqueles antigos, de azulejo rosa e pia grande. saí, peguei o livro na mão e deixei-o de volta no sofá. fui embora. não vi mais o carlos. e o pior: esqueci de ler o título do livro. no caminho de casa, meu celular toca. - lia, é do consultório. você deixou o livro aqui. e alguém pega o telefone: - é lia. você deixou o livro. e um café. vamos? sorri. dei meia volta e nos encontramos no café mais antigo da cidade. ele já estava de aparelho e eu com as mãos frias e um sorriso sem graça. - desculpe convidá-lo assim. sorri. ele sorriu de volta.

nina

e eu que nunca gostei de cachorro me aparece essa no primeiro dia do ano. Nina. foi o nome que eu dei pra labradora que apareceu em frente de casa depois da meia noite. fui lá fora bater a toalha de mesa (coisas de quem mora em casa no interior, um costume. "é pros passarinhos comerem o que sobre, filha", diz a tia velha. rs. meus amigos de apartamento batem a toalha no tanque de lavar roupas. enfim). fui lá fora bater a toalha de mesa depois da ceia e quem está sentada no portão? ela. uma cachorra muito parecida com essa da foto. - vc está perdida, mocinha? - questionei. ela não respondeu, ainda bem. rs. porque senão eu ia achar muito estranho. mas olhou pra mim com olhos perdidos. o lú meu amigo e a laura minha irmã foram lá fora ver. demos água e ficamos tentando acalmá-la porque os barulhos de bomba estavam terríveis e ela estava muito agitada. minha mãe chegou. - coloquem ela na área. a nina entrou. tinha marcas de coleira e nas patas. bobona que só. vinha perto de mim e do meu pai qdo a bomba estourava. e queria pq queria entrar dentro de casa. uma fofa. meus amigos chegaram. a rê, o bruno, a ana e a gisa. a rê é veterinária, entendia mais e disse que deveria ser da região e bem velhinha pq os dentes estavam gastas e o pelo muito bem cuidado. ficamos conversando até às cinco e a nina junto. ela dormiu e os meninos foram embora. a hora que saí da área e fechei a porta a nina começou a chorar. e mais uma bomba estourou. e ela foi desesperada no portão tentando sair. como tinha saído antes, abri pra ela dar uma volta e voltar. ela não voltou. acho que foi pra casa dela. eu acho. mas me deu uma saudade da bichinha imensa! nossa! como se ela já fosse minha há muito tempo. e foi quando eu me dei conta da importância do olhar. a nina não fala, é claro. mas me contou um monte de coisas lindas. dócil, meiga. e não tem espaço em casa pra um cão assim. uma pena. eu ia amar ter uma nina pra mim. eu sempre gostei de labradores. nunca fui fã de cachorro, mas acho labradores lindos. e me apaixonei pela nina nas poucas horas que ela ficou comigo. que dor não vê-la ali. mas ela vai estar aqui dentro. pra sempre. e se o ano começou com uma surpresa tão boa assim, só coisas boas podem vir.

roseira

"quando eu cheguei aqui, em 1973 era primeiro de janeiro. eu não sabia para onde ir, onde dormir e nem o que fazer. uma mão na frente e outra atrás. eu fui atrás de pensão, de algum lugar para ficar, mas o centro da cidade estava vazio. eram quase três da tarde e não havia uma alma naquela rua. a fome apertava, o dinheiro não dava e o medo era grande. dos três, entre a fome, o dinheiro e o medo, o medo vencia de longe. era o que mais me doía. é o medo de enfrentar o que é novo, o que está diferente e o por vir. pois então que resolvi entrar em um bar, desses de boteco, desses qualquer. sentei e pedi um copo de água. da torneira. talvez que o dono do bar tenha visto meus olhos de fome. na minha frente um japonês lanchava um lanche gostoso. ou melhor, não sabia se era bom ou não, só sabia que ele comia algo e isso para mim já era muito. nos olhamos e então ele me perguntou: - o que está fazendo nessa cidade? - vim estudar. - sei. já tem onde ficar? foi aí que conheci o meu primeiro colega de república. e entendi que na nossa vida as pessoas não aparecem por acaso ou do nada. e esse medo que eu tive, esse medo grande tinha que ser vencido porque não dava pra voltar pra casa. não tinha mais casa e eu nos meus idos dos 19 anos. estudei e ralei. feito um louco. dia após dia. e hoje, em 2011 eu olho para trás e vejo o que consegui: quatro filhos lindos, uma esposa maravilhosa, bom amigos e um monte de coisa boa. passar o dia com vocês na cozinha foi emocionante. foi o meu presente de natal atrasado, foi o meu olhar para fazer o melhor peixe, a melhor abobrinha. não me importa se é chique, se não é. tem. e tem de sobra. e tem vocês todos. Feliz 2011. com todas as forças, trabalhos, diferenças e dificuldades que ele pode trazer. tudo na vida anda conforme tem que andar. não tenham tanto medo, tenham sabedoria e particularmente, tenham fé. é isso que nos move. um beijo. pai". um ano cheio de chuva quando estiver bem calor, cheio de sol quando estiver bem frio, cheio de abraço quando estiver triste. e quando estiver feliz também. cheio de pequenas grandes coisas porque é disso que é feito o caminho.