segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Sangue

Subi as escadas passo a passo. A ladeira para a casa que dava para o fundo daquele quintal imenso, enlameado e cheio de grama era ingrime. E mesmo assim, ao chegar lá no fundo, bem no fundo do quintalzinho, tinha essa escada de mais ou menos 8 degraus. Era uma escadinha, na verdade. Sem ajuda para subir ou para descer. Era feita apenas de concreto e ela dava para uma cozinha escura, com uma mesa de lata, tipo dessas mesas de boteco com três ou quatro garrafas de cervejas vazias sobre ela. A porta ao lado da cozinha dava para uma sala com madeira de taco, desses tacos antigos e uma janela grande que abria-se em duas partes e onde entrava  muita luz. E dali, perto da janela, a porta para o quarto.

Pé ante pé, fui entrando. Pés sujos e assim mesmo eu esfreguei um pé contra o outro na hora de entrar na casa. Sinal de respeito, não sei. Tentei limpar, mas meus pés tinha barro e grama. E sujaram o tapete velho e laranja que segurava a mesinha de centro da sala.

Duas pessoas estavam na porta do quarto perto da janela grande olhando lá para dentro. Eu já sabia do que se tratava, ou não. Nossa mente nos confunde quando tentamos nos enganar. Não há de ser nada, pensei. E assim me vi olhando para a televisão desligada e cumprimentando as pessoas perto da janela. Oi, disse.

O homem de bigodes dourados e olho azul saiu do quarto. Passou por mim na sala e perguntou: quer bala? Eu gostava de bala. E ele tinha daquelas balas chamadas 7 Belos. Sabor morango e maçã. Peguei duas de casa sem dizer se aceitava ou não. Apenas acenei com a cabeça. Ele me deu as balas e foi para a cozinha. Ouvi a pia começar a funcionar. A água ia escorrendo da torneira atingindo em cheio o copo sujo há dias de cerveja e os pratos manchados de um feijão preto com arroz. As garrafas de cerveja vazias foram levadas para a lavanderia, junto à caixa veja de papelão que abrigava outros cacos. Acredito que de cerveja também. A água continuava a escorrer na pia e o homem abriu a geladeira e pegou um pedaço generoso de queijo. Colocou inteiro na boca e abriu uma lata de refrigerante. Quer? Perguntou de novo para mim. Fiz que sim com a cabeça.

As pessoas continuavam entrando e saindo do quarto. E a janela, apesar do tempo de chuva, continuava aberta e recebendo vento, batendo lentamente os vidros contra a parede. Eu achei que em algum momento o vidro ia se quebrar, espatifando-se para fora da casa e causando um pouco mais de transtorno para aqueles que estavam lá, com cara de preocupados na porta do quarto.

Foi quando eu ouvi um choro copioso vindo de lá de dentro. Um choro profundo, silencioso na dor e estrondoso no desespero. O homem de bigodes dourados e olho azul foi para o quarto. Algumas pessoas saíram do quarto se lamentando com a cabeça, outros abaixavam os olhos e outros choravam também.

Ali, perto do quarto eu fui e a única coisa que consegui ver foi os pés de uma mulher e um lençol manchado de sangue no chão. Ouvia ao longe a torneira do banheiro pingar naquele azulejo azul e ela com as mãos nos olhos e no rosto. Não vi quem era a mulher. Apenas tinha algumas falas como "meu bebê". E o homem de bigode dourado e olho azul saiu da cozinha, olhou para mim e disse: não deixarei rastro nenhum meu nesse mundo. Ninguém ficará para contar história.

Eu apenas acenei e tomei mais um gole do refrigerante. Eu ainda tinha duas balas e começava a chover. As janelas batiam mais forte e o vento soprava lá fora de um jeito que eu nunca tinha ouvido.

Liguei a televisão.