domingo, 16 de dezembro de 2012

Cicatriz

eu sempre achei a palavra cicatriz uma palavra bonita. me lembrava "por um triz". e "por um triz" muitas coisas podem acontecer.
o cenário é uma família que pensa que é uma família, mas na verdade são conhecidos que convivem no mesmo espaço, ou que suportam-se em espaços diferentes. pessoas que têm o número do celular de todas as outras, mas que não se ligam, que não se comunicam.
se tomássemos o cenário como uma família típica dos anos 1930 em um espaço rural teríamos uma mesa de madeira bem grossa, membros sentados nas cadeiras, uma cruz na parede que cortava a sala e um silêncio profundo, daqueles silêncios de fazer barulho e zunido no ouvido.
- pai, embuchei.
- pai, matei um homem.
- pai, tirei o cabaço da moça.
- pai, acabou a farinha.
- pai, vou casar com o fulano.
o remeter contar ao pai os fatos do que acontece ou aconteceu tem um sentido muito forte de confissão. de desabafo, ou também e tanto, de tentar uma comunicação.
e o pai, lentamente tomando a sopa rala de farinha de mandioca diria:
- embuchou sua puta?
- cadê o sangue?
- esse é meu filho, cabra macho.
- se vira, mulher!
- não casa de jeito nenhum. só por cima do meu cadáver. casar e com um negro, onde já se viu...meto uma porrada sem tamanho em ti e nele...
e o isolamento, necessário para o convívio, ou suportamento dos membros da família, estaria garantido no caso de uma tentativa de rompimento. o pai manda e acabou. e ponto final.
e nada que se faça iria alterar essa situação. nada.
ele bateria com força na mesa, cuspindo um pouco de sopa, gritando e impondo o que pensa. sim, estavam todos bem ao redor da mesa, todos que estavam lá estavam bem e com saúde. mas isso não era o mais importante. o mais importante era se impor, dizer quem era e quem mandava ali.
a mãe fazia o nome do pai e pedia a deus que nada de mais grave acontecesse à filha embuchada, que nada de mais grave tomasse força com o casamento da moça loira com o negro, que o menino tivesse sido ao menos delicado em retirar o cabaço da moça, que a morte tenha sido em função de defesa pessoal que houvesse ainda um pouco de farinha.
que a cruz de madeira pendurada atrás da mesa, acima da cabeça do pai caísse com força sobre ele e o matasse. que formasse uma cicatriz ali, bem naquele ponto. 
mas por um triz isso não aconteceu. e por um triz a moça embuchada não levou um soco do pai alterado e a moça enamorada do rapaz negro não levou um pontapé.
por um triz a faca que a mãe segurava não acertou em cheio a cabeça do marido.
tudo por um triz. um triz.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Tempo Suspenso ou Hiato

Porque na maioria das vezes buscamos palavras para definir um estado de espírito ou uma situação? Será que as palavras podem mesmo defenir? E mais, que palavra define quem somos?
Eu sempre busco uma palavra para definir um espaço, uma ideia, ou um sentimento. Tem pessoas que buscam a música, outros o desenho, a imagem em movimento. Outras tantas ainda buscam o vento, a luz do Sol. Eu busco palavras.
Para mim hoje a palavra que pode definir é a palavra, ou a frase no caso, "tempo suspenso". Aquela palavra que fica na iminência, no desejo, naquilo que ainda não aconteceu, ou não teve tempo de acontecer. Ou que aconteceu apenas em nosso pensamento, em nosso desejo. No tempo suspenso, fora do tempo real.
Talvez que o "tempo suspenso" seja aquele mesmo da condição da solidão. Não de si, nem do outro. Mas da condição de solidão de uma ação, aquele eterno vir-a-ser do desejo, o desejo sozinho consigo mesmo, sem a condição de agir, de ousar.
Essa condição de não ser, de não estar do "tempo suspenso" beira a dimensão do "em haver", daquilo que nos devemos, que devemos a nós mesmos, ao que queremos, ao que somos e desejamos. Para mim essa é condição de subdesenvolvimento social que nos envolvemos, a qual somos inteiramente presentes, de corpo e alma. Essa iminência do vir-a-ser bom, do vir-a-ser tudo o que desejamos, mas que se encontra no "tempo suspenso", no desejo.
Para mim não existe situação mais difícil do que a tentativa, a mola propulsora do erro e do acerto. O tentar ser algo, sair da condição do "tempo suspenso", na vida, no relacionamento, no desejo é o que tem de mais humano, de mais difícil para quem acredita. Esse acreditar está diretamente próximo à condição do desejo, do que se quer materializar, mas não há condições.
Sabe aquele hiato existente entre um momento e outro, entre o momento da concretização do tempo suspenso antes que o desejo volte a imperar? Pois é isso, momentos de hiato. Nossa vida é permeada de tempo suspenso e o hiato desse tempo, quando ele se cansa, quando há uma pausa.
Tal qual um ditongo de fato, quando duas vogais devem estar juntas na mesma linha para que a palavra exista do seu modo mais profundo, muitas vezes o que se tem, são as palavras separadas, as sílabas separadas entre uma linha e outra para que a frase, enfim, possa continuar.
É na vida que os hiatos de um momento e outro separam o tempo suspenso e tentam, em vão, concretizar os desejos. É daqueles dias em que mesmo que se queira que a palavra esteja completa, ausente de separações para que se dignifique a ser exatamente o que se é, que a palavra não cabe, que a palavra separa-se entre um momento e outro do tempo suspenso.
E é assim que a gente se divide para continuar a existir. Para ter mais uma linha, mais um fio de esperança para que o ponto final não chegue, para que mesmo entre um tempo suspenso que outro onde exista um ponto e vírgula, se configure o desejo, se concretize o tempo suspenso.
É dele que a esperança se alimenta. E é ele que a mata também quando o tempo suspenso continua suspenso. Por horas, por dias, por segundos...

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre a Morte

Estive pensando esses dias sobre a efemeridade da vida, sobre o tempo, sobre os meus cabelos brancos, sobre a minha pele que não é mais a mesma. E sempre que me pego pensando isso, sobre essa velocidade do tempo, me pego vendo uma imagem muito simples: o tempo em formato humano é bem parecido com a morte, sim, a morte. Aquela morte que a gente vê de cajado, sem rosto.
O Tempo é o parceiro mais forte da Morte, seu melhor amigo, seu amante, aquele por quem ela faz o que quiser fazer.
Vejo o tempo também como um trator, como um primo próximo das casualidades, dos encontros e desencontros. Parceiro da Morte, primo das Casualidades, funcionário do Destino.
E em meio a tudo isso, culpamos sempre a Morte, sendo egoístas, não entendendo seu sentido, sua função. A Morte é apenas uma obscecada pela Vida que não conseguindo viver, tenta ao máximo empurrar o Tempo, descontrolar os Destinos, desandar os Encontros e seus irmãos Desencontros.
Eu nunca tive um contato direto com a Morte. Sei que ela existe, que está aqui, que está perto. Não no sentido de que vai acontecer agora, se bem que eu posso nem terminar esse artigo, mas sei que ela está perto na proposta de acompanhar a Vida onde quer que ela vá. E isso me dá uma certa Insegurança, a mais medrosa das sensações, em suportar ou em continuar a viver quando a Morte insiste em mostrar seu rosto para quem a gente gosta, para quem a gente admira.
O mundo ficou mais triste desde ontem, menos colorido, um pouco mais dolorido com a partida da Márcia Sielski, uma amiga com quem tive o privilégio de conviver quatro anos enquanto fiz faculdade no Paraná. A Márcia para mim não tinha idade. Dizem que ela partiu com 50 anos ontem. Eu acho que a Márcia partiu com todas as idades do mundo e com tudo o que o mundo ainda podia ter dessa mulher que ainda era tão nova, tão feliz e que, quer queira quer não, me deixava reconfortada em saber que ainda tínhamos seres humanos no mundo enquanto a Márcia estava viva.
Hoje, no restaurante onde almoço, vi o peixinho do Cauã, o garotinho bacana de 8 anos, morrer. Ele tinha sido tirado do aquário para limpar o vidrinho, a pequena caixa de vidro onde morava. Quando voltou para lá, ficou no fundinho, entre as pedras e as plantinhas. Sem se mexer.
A dor que o Cauã sentiu foi ouvida no restaurante todo enquanto ele chorava na cozinha. Era um peixe, mas era o peixe preferido dele.
A Márcia me ensinou mais o do que posso descrever aqui, porque ela, assim como tantas outras pessoas em Ponta Grossa, foram para mim, pessoas de luz, que me ensinaram o valor de amar as pessoas, valorizar a arte, as ideias, o respeito ao outro e principalmente ao ser humano.
A falta que ela vai fazer vai ser incrível. Não para mim, porque estaria sendo egoísta ao falar dessa forma, mas para a humanidade.
A mãe do Cauã vai comprar um peixinho novo para ele hoje.
E eu vou procurar uma estrela nova no céu.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Sobre “pagar peitinho” no País do carnaval


Pois bem que nossos meios de comunicação estão cada vez mais pudicos, cada vez mais pregando a moral e os bons costumes. Sim meus amigos, mais do que o dinheiro da classe média, secas, enchentes e nova novela das seis, temos visto na nossa sociedade (um tanto quanto esquizofrênica) revistas de fofocas que pipocam em todos os cantos, programas de televisão dedicados a falar da vida de famosos e sites que comemoram quanto um peitinho aparece.
Estamos em um País medíocre do ponto de vista da moral. Sim, medíocre. Que País pode falar e julgar se alguém “pagar peitinho” sendo que tem (e vive) o maior carnaval do mundo, com mulheres nuas e seminuas o tempo todo, com a maior vastidão de praias, e por conseqüência de coleção de biquínis de bolinha amarelinha tão pequenininho, com um calor insuportável, com meninas/mulheres exibindo peitos e pernas em cada esquina se oferecendo aos gringos, aos não gringos e com programas de baixo calão como BBB e Fazenda onde o que se mais faz (e o mais importante) é manter o corpitcho em ordem, dar flagras surpreendentes no mamilo e nas bundas das moçoilas, mantendo uma academia no reality para que os corpos malhados e suados possam depois ser fotografados por revistas que vendem (e muito) o chamado “nú artístico”?
Que país é esse que preza a família, a instituição do matrimônio, a monogamia e o marido e os filhos das celebridades quando a maioria da população ainda não sabe ao menos usar uma camisinha, onde o sexo na televisão é explícito e onde a educação e a saúde estão comprometidas em dar o seu fundo, o que lhe resta de dignidade, para fazer a Copa do Mundo?
Li a matéria sobre a modelo Alessandra Ambrósio que se “descuidou” e mostrou um dos seios no supermercado em que estava, veja bem, com os dois filhos, um bebê e uma criança de quatro anos.
Em primeiro lugar, que notícia é essa? De que forma é relevante para minha ou para sua vida saber que a modelo deixou um, UM dos seios à mostra?
O paparazzo fez a fotos, publicou e ainda chama a atenção da moçoila por não usar sutiã. Desculpe, estamos em um país, em um mundo completamente equivocado de valores, de modelos e de respeito. E uma mídia que se impõe às mães que devem, DEVEM ficar magras logo após parir, que devem ser lindas, devem ser supermulheres, supersensuais, supermães, mas não, nunca mostrar o peito. Mostrar o peito, “ó, nossa”, é um absurdo.
Acho que está na hora de revermos nosso conceito, de desligar as baboseiras que Sônia Abrão, Adriane Galisteu, Nelson Rubens e tantos outros dizem a torto e a direito na televisão. De não ler essas notícias que estampam capas de revistas e de sites, veja bem, até conceituados como o site da Folha.
Está na hora de vermos que a Alessandra aí nessa foto apenas foi ao mercado com os filhos. Só isso. Nada fora do comum. Ela não se produziu, ela não pediu para ser fotografada e nem para ser moralizada sobre o que ela deve ou não fazer. E nem se deve ou não usar sutiã.
Está na hora de termos um pouco mais de respeito. No caso, conosco mesmo, com a sociedade e com a humanidade que ainda existe dentro de nós.
Vá ler um livro e cuidar da sua vida. Deixe as Alessandras e tantas outras em paz. A vida é maior que um peitinho.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Lápis dos Ursinhos Carinhosos

Uma das febres dos anos 1980 foi o desenho dos Ursinhos Carinhosos. Muito bonitinhos, os fofinhos viviam no céus, tinham cores, eram realmente suuuper carinhosos e tinham um apelo incrível junto a criançada.
Lembro de todas essas caixas de lápis de cor, canetinha, giz, borracha, apontador dos Ursinhos Carinhosos. Além delas tínhamos também os Ursinhos Carinhosos em formato de ursinhos de pelúcia. O fofo que tinha um coração no peito, tinha também um coração no peito de pelúcia. Era incrível.
E como não podia deixar de ser, eu, quando criança, também queria ter o lápis dos Ursinhos Carinhosos. Estudava em uma escola que meus pais se esforçavam para pagar, ou seja, nessa frase já fica claro que eu não tinha o mesmo padrão de vida das outras amiguinhas. Estudava ali porque meus pais ralavam muito e, consequentemente, não teria como eu ter os mesmos brinquedos, lápis, estojos e etc das amiguinhas.
Uma das coisas que a gente fazia era trocar o estojo. Isso era realmente incrível porque eu conseguia ter, por pelo menos um dia, um estojo do paraguai - lembram-se?- daqueles que abriam pra tudo quanto é lado.
Mas enfim que meu sonho era um pouco menor do que ter um estojo do paraguai. Eu queria ter o lápis dos Ursinhos Carinhosos. Era lindo. Todo cheio de Ursinhos Carinhosos por todos os lados. Uma graça.
Um dia fui na casa do meu avô e eu devia ter lá pelos meus sete anos, mais ou menos. A casa dele ficava a três quarterões da minha casa, como ainda é hoje. E então, eu sentei na sala e de longe eu vi que tinha um estojo no escritório ou em cima da mesa, não me lembro. Só sei que fui olhar o estojo e a minha surpresa foi que havia sim, um lápis lindo, lindo dos Ursinhos Carinhosos lá dentro. Era do Ursinho Carinhoso verde, cujo qual agora eu não me lembro o nome.
E então eu pedi para algum adulto, acho que para a esposa do meu avô, se eu podia ficar com o lápis. Não sei bem o que aconteceu, mas ouvi a resposta não. Para uma criança de sete anos que queria MUITO um lápis dos Ursinhos Carinhosos aquela não era bem a resposta que eu gostaria de ouvir. E então, que rapidamente, me apoderei do lápis. E passei a noite na casa do meu avô com o lápis na mão, escrevendo em papéis, pra lá e pra cá.
Na hora de ir embora eu tinha plena consciência que o lápis não era meu - mas eu queria tanto que fosse - que levei o lápis embora.
Fomos para casa e quando chegamos lá a esposa do meu avô ligou perguntando se o lápis estava comigo. Quem atendeu o telefone - ainda com fio - foi o meu pai.
- Lídia, você está com algum lápis?
Eu tremi de medo e disse que sim, que queria muito o lápis, que achava lindo que tinha pegado pra mim e etc etc etc e a cara de choro, e o medo e tudo veio junto.
Foi então que meu pai chegou bem perto de mim e disse:
- Filha, isso é um lápis, é pouco, eu posso comprar, mas o que você tem que saber é que esse lápis não é seu, é de outra pessoa e isso não é certo. Você tem que ir devolver esse lápis e aprender que o que não é seu, não é seu e você não deve pegar.
Meu pai pegou na minha mão, à noite e fomos à pé para a casa do meu avô. Ele me fez devolver o lápis e pedir desculpa pelo o que eu tinha feito. E isso hoje parece pouco, parece uma história banal e até mesmo cruel, porque, oras, era apenas um lápis.
Mas o que sei é que o mais importante foi que aquela menina de 7 anos nunca mais pegou nada que fosse de outra pessoa, não se apropriou de nada que quissesse se não pudesse comprar. E isso foi uma lição para a minha vida.
De honestidade. De integridade.
Naquele dia eu entendi que nada que não fosse meu, era para ser meu se eu não pudesse adquirir com dignidade o material, se eu não pudesse tê-lo nas minhas mãos por mim.
Em meio a campanhas eleitorais de bolsos cheios, em meio a uma sociedade que se corrompe por tão pouco, imagino que a dor e vergonha que eu tive em ir à casa do meu avô, foi uma bela lição de vida.
Veja bem, não sou melhor do que ninguém, não é disso que estou falando. Estou falando de honestidade e de como aprendemos a ser honestos na vida.
Meus pais são para mim e para os meus irmãos sinônimos de honestidade. Eu nunca vi meu pai dever nada e não pagar, nunca vi minha mãe fazer uma dívida e nunca tivemos mais do que pudemos.
E a casa onde eu morava, de esquina, que era muito pequena, abrigou uma família que não tinha muito dinheiro, mas que compensava em honestidade e em amor.
Eu gostaria muito que todas as crianças pudessem ter a sorte que eu tive. 

ps: eu ganhei o lápis dos Ursinhos Carinhosos um tempo depois. Era meu. E era tão meu e eu gostei tanto que usei e o que sobrou em guardei. Está em alguma das caixas na casa dos meus pais que guardam, como tesouro, as coisas que fizeram parte da minha vida.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A Cozinha

A cozinha era toda moldada com azulejos. Eram azulejos marrons, de um marrom bem clarinho, quase bege, mas ainda assim marrom. Todos tinham um filetinho de marrom bem escuro, como se fosse um enfeite. Os armários também eram marrons e a geladeira, bege, cor de areia escura. A pia era de aço inox, um avanço para uma casa tão antiga. Ter uma pia de aço inox na cozinha toda marrom e antiga destoava um pouco do propósito de ser uma cozinha marrom, mas o aço refletia algumas vezes a luz que se acendia raramente, como quem diz que ainda vive, como quem se lembra que respira. O fogão, bege com tonalidades de marrom, tinha seis bocas. Um exagero, mas tinha.
No final da tarde, a mesa, que também era marrom, abrigava uma garrafa térmica de café. A garrafa era preta e estava sempre cheia de um café bem mal coado, que ficava marrom quando colocado, raramente, no copo.
Contudo, na manhã do outro dia, era necessário jogar todo o café na pia. Ninguém tinha tomado um golinho sequer do café. E o café bem mal coado, quase bege, era jogado pelo ralo. Um ralo escuro também. Quase não se via seu fundo.
A casa grande e antiga parecia estar vazia o dia todo e o final da tarde trazia o Sol que batia na janela pequenininha acima, bem acima, quase no teto, perto da pia. Junto com o Sol sempre entrava um vento que balançava lentamente a cortina de rendinha que estava mais para bege do que para branco.
Ao anoitecer daquele dia, o único barulho que se ouviu foi o som do motor da geladeira bege e antiga. E também os passos de Clarice em direção à cozinha. Ouvi-se então o barulho da gaveta de talheres abrindo, coisa rara. Os talheres tinham os cabos pretos e ficavam espalhados na gaveta. Nunca ninguém os usava. Clarice então pegou uma faca de cortar bife que tinha o cabo bem preto com pinos que a prendia. Os pinos eram prateados.
Clarice olhou a faca e viu seu reflexo, um reflexto também um tanto marrom. E então o tom marrom e bege que moldava toda a cozinha ganhou um tom de vermelho. Tons de vermelho escorriam no azulejo bege e no chão de piso marrom e bege.
E mesmo depois do vermelho pintar a cozinha, garrafa de café continuou cheia por alguns dias.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A velha e o mar

As ondas que vão e vem no mar formando uma espuma branca e espessa iam tentando clarear os meus pensamentos pouco a pouco. No infinito, a tempestade que se formava ia de encontro ao mar, enfurecendo-o, fazendo as ondas ficarem cada vez mais altas, cada vez mais fortes.
A praia vazia denunciava o inverno que insistia em ficar, em queimar as bochechas e cortar os rostos. O vento gelado, apesar de dolorido, nos faz ver que estamos vivos, que somos feitos de carne, calor e frio.
A praia vazia tinha naquele dia quatro pequenos passarinhos em busca de alimentos que bicavam o chão, ia para perto e  para longe das ondinhas fracas que arrebentavam na beira da praia.
Foi nessa praia que sentei. A escadaria íngrime tinha muito a ver com a vazão rápida dos meus pensamentos: era preciso tomar cuidado ao pensar, assim como descer aquela escada, pensar muito rápido era perigoso. A cada olhar para o mar uma reflexão, uma dor, um consolo. Eu estava como a praia gelada daquela tarde: vazia. Pensando no futuro, nas dores do passado, nas alegrias que condicionavam um seco presente.
Nesse momento, seis surfistas chegaram. O mar vazio e as ondas altas eram um convite para que entrassem no mar gelado, desafiando algo interno muito forte, acredito eu.
E meio a descida dos surfistas para a orla, uma senhora velha que andava de bicicleta parou na minha frente e disse que precisava falar comigo, que era urgente. Perguntei o que ela queria, se eu podia ajudar e ela disse:
- Ninguém acredita em mim, mas é verdade e eu preciso te falar: está vendo esses surfistas? Pois é, minha filha, eu vi. Eu vi sem ninguém me dizer. Eu saí de casa hoje com isso na cabeça. Minha irmã diz que sou louca que não devo falar nada, mas sei que para você eu posso falar: um deles vai morrer. Vai ter um afogamento.
Olhei desconfiada, assustada ou, na melhor das hipóteses, pasmada. Quis rir, mas depois pensei que isso poderia ser um sinal de desrespeito. Tentei acalmá-la. Ou me acalmar. Não é toda hora que eu recebo uma notícia dessas em primeira mão. Você está sentado em algum lugar, perdido em pensamentos e alguém vem contar que a morte está perto. Oras, disso que já sei. Mas te anunciam a morte, o cenário fica diferente.
- Entendo a senhora, pode deixar que vou ficar de olho neles.
- É verdade, fique de olho. Um deles vai se afogar, o mar está muito bravo.
Olhei novamente para o mar, os surfistas haviam entrado. O vento insistia em balançar meus cabelos, em tampar a visão dos meus olhos.
As ondas continuavam a ficar agitadas, mas eu já não tinha muito o que fazer. Fiquei ainda, por meia hora, olhando os surfistas. Via ao longe seis pequenos pontos pretos que iam se arrastando na correnteza, junto com a maré. Sem perceber, eram carregados de um lado para o outro, conforme o vento queria, conforme o mar desejava.
Nenhum deles se afogou. O que afogou, o que invadiu de verdade, foram os meus pensamentos, os meus anseios que insistiam em formar ondas dentro de mim.
Olhei para frente e o mar continuava a se movimentar. Independente da minha vontade, da vontade de velha ou dos seis surfistas, o mar não ia parar, as ondas iam insistir até fazer Sol novamente, até a maré abaixar, até o vento sentir que não tinha mais para onde ventar, para onde espalhar os tormentos.
Naquele dia, quem estava afogada era eu.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Quarto de dormir

Quando a gente tem uns sete anos, mais ou menos, a gente começa a perceber o mundo a nossa volta. Eu, com sete anos, tinha mais dois irmãos menores e começava a perceber que o mundo a minha volta nunca seria o mesmo mundo das amigas que não tinham irmãos.
Tudo era um tanto diferente para mim nesse sentido porque ter dois irmãos com sete anos não é uma coisa fácil. E eu falo do ponto de vista de uma criança que teve que aprender a dividir tudo. Até os pais.
A atenção se volta para o bebê caçula, o seu outro irmão, no mínimo ainda está aprendendo a dar o laço no tênis e assim por diante.
A gente morava numa casa pequena, dessas pequenas mesmo. De esquina. Tinha um muro baixo que meu pai tratou logo de erguer quando o bairro foi recebendo novos moradores, quando a cidade foi crescendo e quando o perigo podia chegar. Antes do bairro se encher de gente que se enchia de falar com os vizinhos, ou antes da gente sentir medo do outro, o muro era baixo e eu gostava de ficar sentada no muro no final da tarde enquanto minha irmã andava de andador e meu irmão de motoca.
E a casa que a gente morava tinha dois quartos, um banheiro, uma sala e uma cozinha. Só. E uma antena na TV antiga que a gente tinha que ir lá fora mexer para o sinal pegar.
eu gostava de subir na antena. Era um passatempo bom e divertido.
Eu, como irmã mais velha, tinha habilidades que os pequenos ainda não tinham, e como irmã mais velha, isso me dava um certo poder. 
Lembro que dormíamos todos no mesmo quarto, nós 3. Dividíamos o guarda-roupa e o saquinho de Fandagos. E dividíamos também as historinhas que meus pais contavam à noite. Eu acho que tivemos uma vida bem comunitária na infância. Era tudo muito dividido. Uma vez me lembro de termos dividido um sorvete. E também já dividimos chiclete, paçoquinha e bombons como o sonho de valsa.
Quando eu fiz 12 anos meu terceiro irmão nasceu. Éramos em 4 agora e o quarto ia ficando cada vez mais apertado, o guarda-roupa também e todas as mãos no saco de fandangos tomavam agora uma proporção diferente.
E a gente dormia todo mundo junto.
Por ordem, o Lean, eu, o Lucas e a Laura. os menores dormiam encostados na parede para não terem perigo de cair da cama. E eu e o Lucas davámos um jeito nisso ficando no meio, com duas camas que eram puxadas debaixo das outras camas. À noite, minha mãe costumava dizer que para beijar todos os filhos tinha que ir rolando de uma cama para outra.
Eu achava isso engraçado.
E até os 17, 18 anos quando mudamos de casa foi assim. Todo mundo no mesmo quarto.
Na mudança, uma casa maior, a Laura e eu dormíamos juntas. E o Lean e Lucas em outro quarto. Mas vira e mexe eu dava eu jeito de dormir com os meninos também. Um pouco acho para matar a saudade daquele tempo. Muitas vezes, depois que o Lucas casou, pedi para o Lean colocar o colchão no meu quarto. E a Laura dizia que eu fosse dormir no quarto dele, pois tinha uma cama sobrando. Mas não era a mesma coisa.
E então eu saí de casa e fui morar fora. E depois eu voltei. Daí a Laura saiu de casa e foi morar fora. E daí voltou. E o Lucas foi morar fora, voltou e casou. E então não voltou mais. E a Laura foi morar fora. E não voltou mais. E o Lean passou na faculdade. E voltou para casa. E então eu fui morar fora de novo. E agora o Lean passou na faculdade de novo e foi morar fora outra vez.
E não tem ninguém mais morando no mesmo lugar. Não tem mais ninguém dormindo no mesmo quarto ou em quartos perto um do outro.
E nesses dias, quando me dei conta disso, de que a vida tinha passado, de que não via mais o Lucas brincando com o Kart dele, a Laura brincado na areinha no fundo de casa e o Lean fazendo os barulhos mais incríveis do mundo brincando de Power Rangers e depois do dia todo de brincar a gente indo dormir junto, eu chorei. Chorei fundo.
E hoje quando eu falei com o Lean que estava indo fazer a matrícula dele na faculdade, e quando eu falei com a Laura que estava estudando para o mestrado e quando eu falei com o Lucas que está procurando um apartamento maior para quando tiver filho, eu chorei de novo. E meu peito apertou.
Porque eu vi que nunca mais a gente vai viver assim, daquele jeito, naquela vida meio comunitária, cheia de gente, de bagunça, de dividir onde guardar a roupa e quem vai dobrar os lençóis e cobertores numa manhã fria de domingo.
E eu pensei que se um dia eu pudesse escolher, eu gostaria muito de morrer beeeeem velhinha. Bem velhinha mesmo. E se eu pudesse escolher de novo, que eu pudesse passar uma última noite no mesmo quarto com todos os meus irmãos.
Lembrando de uma época que na minha cabeça parece estar em preto em branco de tão antiga, mas no meu coração está pintada de dourado, de um dourado forte, feito ouro, raridade.
E então eu dormiria e diria: boa noite Lucas, boa noite Laura, boa noite Lê.
E pronto. Fecharia meus olhos e dormiria em paz.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Roupas no varal

Pendurou a roupa no varal com delicadeza. O vento espalhava o cheiro do amaciante pela varanda e ia dançando com a roupa estendida e com a saia de algodão que Ana usava.
Os cabelos de Ana, presos em um coque, iam se desmanchando a cada roupa pendurada. Os fios molhados moldavam o cabelo da moça, fazendo graça com os fios ligeiramente soltos que teimavam em encostar no seu rosto e nos seus olhos.
A bacia com as roupas molhava o chão da varanda que deixava a água escorrer até a rua, formando um pequeno riozinho de água doce. O vento continuava a bater e Ana acariciava a roupa no varal como quem estivesse delicadamente decorando cada centímetro do corpo da outra pessoa.
Seus pensamentos vagavam com o vento, com os fios de cabelo soltos e a cada movimento para se abaixar e pegar a roupa, Ana sentia mais e mais vontade de chorar.
Tirou os chinelos e sentiu a água que escorria da bacia. Dedo a dedo, por todo o pé.
Voltou a sentir o cheiro do amaciante na roupa limpa, e chorou.
Quando voltou a si as roupas estavam manchadas de vermelho, um vermelho sangue. O riozinho de água doce estava respingado de dor e de lágrimas.
E o vento agora insistia em secar os olhos de Ana, insistia em tentar fechá-los de uma vez. O mesmo vento derrubou o lençol manchado por cima do corpo da moça e soprou forte, muito forte.
Mas nada mais havia de ser feito.
Os fios de cabelo estavam agora espalhados pelo chão da varanda que teimava em evidenciar aquele cheiro de amaciante por toda a casa.
Ninguém viu. Só o vento.

domingo, 8 de janeiro de 2012

A casa

Por favor, fique à vontade. Pode entrar, a casa é sua.
Desculpe a bagunça. A bagunça interna no caso.
Mas pode entrar.
Limpe os pés. E o coração.
Pode entrar. A porta está aberta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A velha

Andava lentamente pela calçada esburacada. As ancas iam de um lado para o outro como que fazendo um molejo, mas que na verdade retomava a lembrança de que havia ali dores intensas, daquelas que existiam desde que era criança e trabalhava no canavial.
Andava lentamente com uma sacola de plástico na mão carregada com algumas coisas que não conseguíamos ver. Usava uma camiseta esgarçada onde lia-se "I Love New York". Jamais esteve em Nova York. Mal sabia ler. Suas mãos cheiravam a alho cru e cebola que a velha descascava para o almoço na casa dos Mendes, família rica e tradicional da cidade.
A velha então tropeçou na calçada esburacada e derrubou a sacola. Espalhou-se no chão e no asfalto doces e mais doces. Os sonhos que a velha tanto gostava.