sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Estômago

Falar sobre o filme "Estômago" (Marcos Jorge/2008) não é uma tarefa fácil para mim, que sou uma fã absoluta dessa obra. Não tenho pretensão de escrever nada aqui em um nível de profundidade crítica cinematográfica nem nada disso.

Quero apenas apontar algumas situações me me chamaram a atenção nesse filme que facilmente entrou para a lista dos meus 10 mais de todos os tempos. Eu o revi pela décima quinta vez eu acho na última quinta-feira e para o meu espanto, o filme fica melhor a cada vez que assistimos. Como o bom "Sassicaia" que Giovanni, o dono do restaurante, apresenta para Nonato.

Bom, assisti esse filme pela primeira vez em meados de 2008, por sugestão de um amigo. A história, simplificada, é sobre Raimundo Nonato que vem para o Sul Maravilha buscar uma vida melhor. Chamado pelas pessoas de paraíba, cearense, nordestino, o que mais aparece é que a identidade de Nonato se constrói ao longo da história para se tornar o "Alecrim", que sobe ao poder devido aos seus dotes culinários.

Pois bem, Raimundo vem para o sul maravilha, começa a trabalhar num boteco, é chamado para trabalhar num restaurante e se apaixona pela prostituta Iria. Tudo perfeito, mas como todo processo digestivo que passa pelo estômago, o que começa na boca que engolimos no nosso dia a dia só pode dar em merda no final.

O filme acontece em duas histórias paralelas: Nonato chegando na cidade grande e Nonato chegando na cela da prisão. Um filme que convence sobre a ideia de como funciona um bom roteiro e como esse roteiro tem força e peso casado com as imagens. As duas histórias estão totalmente amarradas e fazem jus a todos os prêmios em festivais que ganharam.


Não é sem propósito que a primeira cena tem um close up na boca de Nonato, onde começa o processo de digestão.

Um filme ousado e brilhantemente construído, desde a direção de arte, até a construção do roteiro, que como diz o roteirista Lusa Silvestre, nunca termina. Baseado no conto "Presos pelo Estômago" do livro "Pólvora, Gorgonzola e Alecrim" de Lusa Silvestre, o filme é uma explosão de sabores da influência do neorrealismo italiano, onde o diretor, Marcos Jorge, acrescenta diferentes temperos.

A diferença se dá no contexto de que Nonato está sendo sempre oprimido, seja pelo patrão, pela prostituta/namorada e pela própria sociedade. A condição de vida de Nonato é sufocante como o quartinho em que ele dorme chegando na cidade grande, e ele parece também não fazer nada para melhorar a situação em que está. Mesmo quando consegue isso, Nonato se obriga a voltar na condição de subalterno.

No neorrealismo italiano a condição que se apresenta ao homem é de um situação real, no pós-guerra, com problemas de trabalho e de condições de vida, onde o olhar do homem se volta para a sobrevivência seja lá de que forma isso possa acontecer. Vemos isso, por exemplo, em "Ladrões de Bicicleta" (1948/Vittório de Sicca) onde há a necessida de sobreviver a qualquer custo, nem que para isso tem que se tornar um ladrão também.

Em "Estômago" a ascenção se dá de outra maneira, através do poder da gastronomia Nonato se vê como alguém que pode subir na vida, não na condição de um trabalhador, mas com o poder de dominar a cela onde vive supostamente por um crime que cometeu e que vamos conhecendo ao longo da história.

Nonato é um personagem real, fruto do realismo dos dias de hoje, da lei do mais forte numa selva a la "Plínio Marcos" que é a cadeia na qual se encontra, com o realismo das falas, da vida e de uma figuração primorosa, tal que de Sicca utiliza em "Ladrões de Bicicleta".

"Estômago" é uma digestão completa de uma realidade nua e crua que vemos por aí todos os dias. Um filme de dar água na boca e que é, na verdade, um soco no estômago.

Vale a pena assistir o filme e conferir a perfomance incrível de João Miguel como Nonato e Fabíula Nascimento como a prostituta Iria. Fora todos as outras personagens que habitam esse universo real e dolorido.

Não é sem propósito que a última cena do filme é uma bunda. É ali que o estômago termina seu trabalho.
Confiram.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Transeunte, o filme.


Hoje assisti "Transeunte", o novo filme do Erik Rocha, o filho do homem. Fui ao cinema pensando em ver um filme num estilo e numa estética completamente diferente do que assisti.
Vamos aos poucos tentar falar desse meu mais novo filme preferido. 

Quando li a sinopse (as sinopses nunca são boas, nunca. eu queria conhecer alguém que faça sinopses) eu li a história do Expedito, um senhor que transita pelas ruas do Rio de Janeiro. Até aí, tudo bem. Mas ninguém me falou que eu ia ver um filme quase mudo, onde o mais bonito seria o olhar do Expedito, que vive uma vida esperando, até certo ponto, por uma morte que o fará reencontrar a esposa já falecida.

O taciturno Expedito não ri nem quando a doce sobrinha lhe leva um bolo e um presente no dia de seu aniversário. Não agradece, não sorri na foto e tem um olhar de quase querer morrer de tédio, de tristeza, de falta de sentido na vida. Passa os dias a tomar remédio, ouvir o radinho de pilha com fone de ouvido e a dormir no sofá. 
Na boa, quem nunca sentiu isso uma vez na vida que atire a primeira pedra. Expedito é, até certo momento, aquilo que o Brasil, os brasileiros têm se tornado diante do resto do mundo: um transeunte, aquele que passa e não permanece, não deixa nada e não transforma nada.

Expedito vai então a um jogo de futebol no estádio e assim como um milagre do santo das causas impossíveis que tem o seu nome, grita, sorri e sente euforia durante o jogo. É aí que o filme muda completamente. Como se fosse um vinil antigo, com as músicas que Expedito mais aprecia, o filme muda do lado A para o lado B de um jeito tão poético e tão bonito, que até a imagem de um simples corte de cabelo enobrece a tela em preto e branco e a faz, sem que nós percebamos, ficar colorida.

Expedito toma um bom banho, corta o cabelo, compra óculos novos, descobre um bar em que as pessoas riem, cantam canções belíssimas de Lupicínio Rodrigues e tantos outros e descobre o prazer carnal. Não vou contar mais do que isso, senão o filme perde a graça.

O interessante mesmo é que Erik, o filho do homem (filho da fotógrafa Paula Gaitán e de Glauber Rocha), faz um filme em que o som e a imagem comandam os movimentos quase lentos de Expedito, bem como seu jeito desconfiado de andar. O silêncio no filme é ouro e dessa forma, o que temos em tela é um pote de riquezas sem fim. Num primeiro momento, nos incomoda aquele silêncio quase de morte de Expedito.
Depois, em duas horas numa sala escura vendo um filme em película em preto e branco o que temos são as palavras que acompanham as imagens em silêncio, sem precisar dizer o que o olhar do doce Expedito diz, lemos seus lábios, seus sentimentos, suas dores e amores de um jeito único. Como se estivéssemos próximos de um amigo. E em determinados momentos do filme, sorrimos sozinhos querendo simplesmente dizer, "ah Expedito..."

Bela música, uma montagem de tirar o fôlego, uma fotografia incrível, onde até mesmo a bolsa dos olhos de Expedito aparece e um preto e branco que ao invés de nos incomodar nos transporta para o mundo silencioso de Expedito, fazem desse filme do Erik uma "tela e transe".
Assistam se puderem, vale a pena ver essa película, essa preciosidade do cinema nacional, que vai muito além do que vemos "globalmente" nas telas do cinema do país. O cinema nacional é muito mais do que atores de novela. Acreditem.