quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Lápis dos Ursinhos Carinhosos

Uma das febres dos anos 1980 foi o desenho dos Ursinhos Carinhosos. Muito bonitinhos, os fofinhos viviam no céus, tinham cores, eram realmente suuuper carinhosos e tinham um apelo incrível junto a criançada.
Lembro de todas essas caixas de lápis de cor, canetinha, giz, borracha, apontador dos Ursinhos Carinhosos. Além delas tínhamos também os Ursinhos Carinhosos em formato de ursinhos de pelúcia. O fofo que tinha um coração no peito, tinha também um coração no peito de pelúcia. Era incrível.
E como não podia deixar de ser, eu, quando criança, também queria ter o lápis dos Ursinhos Carinhosos. Estudava em uma escola que meus pais se esforçavam para pagar, ou seja, nessa frase já fica claro que eu não tinha o mesmo padrão de vida das outras amiguinhas. Estudava ali porque meus pais ralavam muito e, consequentemente, não teria como eu ter os mesmos brinquedos, lápis, estojos e etc das amiguinhas.
Uma das coisas que a gente fazia era trocar o estojo. Isso era realmente incrível porque eu conseguia ter, por pelo menos um dia, um estojo do paraguai - lembram-se?- daqueles que abriam pra tudo quanto é lado.
Mas enfim que meu sonho era um pouco menor do que ter um estojo do paraguai. Eu queria ter o lápis dos Ursinhos Carinhosos. Era lindo. Todo cheio de Ursinhos Carinhosos por todos os lados. Uma graça.
Um dia fui na casa do meu avô e eu devia ter lá pelos meus sete anos, mais ou menos. A casa dele ficava a três quarterões da minha casa, como ainda é hoje. E então, eu sentei na sala e de longe eu vi que tinha um estojo no escritório ou em cima da mesa, não me lembro. Só sei que fui olhar o estojo e a minha surpresa foi que havia sim, um lápis lindo, lindo dos Ursinhos Carinhosos lá dentro. Era do Ursinho Carinhoso verde, cujo qual agora eu não me lembro o nome.
E então eu pedi para algum adulto, acho que para a esposa do meu avô, se eu podia ficar com o lápis. Não sei bem o que aconteceu, mas ouvi a resposta não. Para uma criança de sete anos que queria MUITO um lápis dos Ursinhos Carinhosos aquela não era bem a resposta que eu gostaria de ouvir. E então, que rapidamente, me apoderei do lápis. E passei a noite na casa do meu avô com o lápis na mão, escrevendo em papéis, pra lá e pra cá.
Na hora de ir embora eu tinha plena consciência que o lápis não era meu - mas eu queria tanto que fosse - que levei o lápis embora.
Fomos para casa e quando chegamos lá a esposa do meu avô ligou perguntando se o lápis estava comigo. Quem atendeu o telefone - ainda com fio - foi o meu pai.
- Lídia, você está com algum lápis?
Eu tremi de medo e disse que sim, que queria muito o lápis, que achava lindo que tinha pegado pra mim e etc etc etc e a cara de choro, e o medo e tudo veio junto.
Foi então que meu pai chegou bem perto de mim e disse:
- Filha, isso é um lápis, é pouco, eu posso comprar, mas o que você tem que saber é que esse lápis não é seu, é de outra pessoa e isso não é certo. Você tem que ir devolver esse lápis e aprender que o que não é seu, não é seu e você não deve pegar.
Meu pai pegou na minha mão, à noite e fomos à pé para a casa do meu avô. Ele me fez devolver o lápis e pedir desculpa pelo o que eu tinha feito. E isso hoje parece pouco, parece uma história banal e até mesmo cruel, porque, oras, era apenas um lápis.
Mas o que sei é que o mais importante foi que aquela menina de 7 anos nunca mais pegou nada que fosse de outra pessoa, não se apropriou de nada que quissesse se não pudesse comprar. E isso foi uma lição para a minha vida.
De honestidade. De integridade.
Naquele dia eu entendi que nada que não fosse meu, era para ser meu se eu não pudesse adquirir com dignidade o material, se eu não pudesse tê-lo nas minhas mãos por mim.
Em meio a campanhas eleitorais de bolsos cheios, em meio a uma sociedade que se corrompe por tão pouco, imagino que a dor e vergonha que eu tive em ir à casa do meu avô, foi uma bela lição de vida.
Veja bem, não sou melhor do que ninguém, não é disso que estou falando. Estou falando de honestidade e de como aprendemos a ser honestos na vida.
Meus pais são para mim e para os meus irmãos sinônimos de honestidade. Eu nunca vi meu pai dever nada e não pagar, nunca vi minha mãe fazer uma dívida e nunca tivemos mais do que pudemos.
E a casa onde eu morava, de esquina, que era muito pequena, abrigou uma família que não tinha muito dinheiro, mas que compensava em honestidade e em amor.
Eu gostaria muito que todas as crianças pudessem ter a sorte que eu tive. 

ps: eu ganhei o lápis dos Ursinhos Carinhosos um tempo depois. Era meu. E era tão meu e eu gostei tanto que usei e o que sobrou em guardei. Está em alguma das caixas na casa dos meus pais que guardam, como tesouro, as coisas que fizeram parte da minha vida.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A Cozinha

A cozinha era toda moldada com azulejos. Eram azulejos marrons, de um marrom bem clarinho, quase bege, mas ainda assim marrom. Todos tinham um filetinho de marrom bem escuro, como se fosse um enfeite. Os armários também eram marrons e a geladeira, bege, cor de areia escura. A pia era de aço inox, um avanço para uma casa tão antiga. Ter uma pia de aço inox na cozinha toda marrom e antiga destoava um pouco do propósito de ser uma cozinha marrom, mas o aço refletia algumas vezes a luz que se acendia raramente, como quem diz que ainda vive, como quem se lembra que respira. O fogão, bege com tonalidades de marrom, tinha seis bocas. Um exagero, mas tinha.
No final da tarde, a mesa, que também era marrom, abrigava uma garrafa térmica de café. A garrafa era preta e estava sempre cheia de um café bem mal coado, que ficava marrom quando colocado, raramente, no copo.
Contudo, na manhã do outro dia, era necessário jogar todo o café na pia. Ninguém tinha tomado um golinho sequer do café. E o café bem mal coado, quase bege, era jogado pelo ralo. Um ralo escuro também. Quase não se via seu fundo.
A casa grande e antiga parecia estar vazia o dia todo e o final da tarde trazia o Sol que batia na janela pequenininha acima, bem acima, quase no teto, perto da pia. Junto com o Sol sempre entrava um vento que balançava lentamente a cortina de rendinha que estava mais para bege do que para branco.
Ao anoitecer daquele dia, o único barulho que se ouviu foi o som do motor da geladeira bege e antiga. E também os passos de Clarice em direção à cozinha. Ouvi-se então o barulho da gaveta de talheres abrindo, coisa rara. Os talheres tinham os cabos pretos e ficavam espalhados na gaveta. Nunca ninguém os usava. Clarice então pegou uma faca de cortar bife que tinha o cabo bem preto com pinos que a prendia. Os pinos eram prateados.
Clarice olhou a faca e viu seu reflexo, um reflexto também um tanto marrom. E então o tom marrom e bege que moldava toda a cozinha ganhou um tom de vermelho. Tons de vermelho escorriam no azulejo bege e no chão de piso marrom e bege.
E mesmo depois do vermelho pintar a cozinha, garrafa de café continuou cheia por alguns dias.