terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Roupas no varal

Pendurou a roupa no varal com delicadeza. O vento espalhava o cheiro do amaciante pela varanda e ia dançando com a roupa estendida e com a saia de algodão que Ana usava.
Os cabelos de Ana, presos em um coque, iam se desmanchando a cada roupa pendurada. Os fios molhados moldavam o cabelo da moça, fazendo graça com os fios ligeiramente soltos que teimavam em encostar no seu rosto e nos seus olhos.
A bacia com as roupas molhava o chão da varanda que deixava a água escorrer até a rua, formando um pequeno riozinho de água doce. O vento continuava a bater e Ana acariciava a roupa no varal como quem estivesse delicadamente decorando cada centímetro do corpo da outra pessoa.
Seus pensamentos vagavam com o vento, com os fios de cabelo soltos e a cada movimento para se abaixar e pegar a roupa, Ana sentia mais e mais vontade de chorar.
Tirou os chinelos e sentiu a água que escorria da bacia. Dedo a dedo, por todo o pé.
Voltou a sentir o cheiro do amaciante na roupa limpa, e chorou.
Quando voltou a si as roupas estavam manchadas de vermelho, um vermelho sangue. O riozinho de água doce estava respingado de dor e de lágrimas.
E o vento agora insistia em secar os olhos de Ana, insistia em tentar fechá-los de uma vez. O mesmo vento derrubou o lençol manchado por cima do corpo da moça e soprou forte, muito forte.
Mas nada mais havia de ser feito.
Os fios de cabelo estavam agora espalhados pelo chão da varanda que teimava em evidenciar aquele cheiro de amaciante por toda a casa.
Ninguém viu. Só o vento.

domingo, 8 de janeiro de 2012

A casa

Por favor, fique à vontade. Pode entrar, a casa é sua.
Desculpe a bagunça. A bagunça interna no caso.
Mas pode entrar.
Limpe os pés. E o coração.
Pode entrar. A porta está aberta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A velha

Andava lentamente pela calçada esburacada. As ancas iam de um lado para o outro como que fazendo um molejo, mas que na verdade retomava a lembrança de que havia ali dores intensas, daquelas que existiam desde que era criança e trabalhava no canavial.
Andava lentamente com uma sacola de plástico na mão carregada com algumas coisas que não conseguíamos ver. Usava uma camiseta esgarçada onde lia-se "I Love New York". Jamais esteve em Nova York. Mal sabia ler. Suas mãos cheiravam a alho cru e cebola que a velha descascava para o almoço na casa dos Mendes, família rica e tradicional da cidade.
A velha então tropeçou na calçada esburacada e derrubou a sacola. Espalhou-se no chão e no asfalto doces e mais doces. Os sonhos que a velha tanto gostava.