terça-feira, 8 de outubro de 2013

Carro Céu

...E eram assim que as imagens iam e vinham. Passando lentamente pela minha cabeça, lentamente pelo meu olhar. Algumas eram memórias de infância; brincadeiras, o pé na grama, a água da mangueira esguichando feito um arco e formando logo ali, na esquina um arco-íris.

Outras eram lembranças de um lugar qualquer, pouco a pouco, tempo a tempo, as casas, as ruas, os carros, os poucos carros, os sofás, as camas, o chão batido de terra, o forro de madeira. E as falas de feliz dia, feliz aniversário, feliz dia dos pais, feliz dia das mães. Apenas feliz. Era isso.

E as principais, as que pausadamente, feito uma caixinha de música iam e vinham, eram as imagens que marcariam para sempre as memórias, a memória que eu tinha, a memória que eu não tinha e a que eu queria ter.

Imagens de rostos, de pessoas passando feito um carrossel ao meu redor, rodando, rodopiando e de longe, lá de longe um algodão-doce enchia a boca de alegria, e essas pessoas iam acenando, sorrindo, cantando e girando no lugar onde eu estava, onde eu vivi.

Como eu imaginava que seria o céu...As imagens da janela de um carro em movimento, as lembranças tecendo uma figura, um fio condutor que me levaria de volta ao mais precioso dos tempos, ao mais precioso dos lugares: ao coração.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Pé de Manga

Eram mais ou menos os dias quentes de um verão qualquer. A tarde quase depois do almoço, quase depois do sono ia chegando sonolenta, a passos lentos, como quem está com preguiça de andar no calor de um sol escaldante.
Embaixo de um pé de manga tinha uma sombra fresca, dessas tão frescas e tão boas que pareciam o suco de limão que a vó fazia, que parecia travesseiro fofo, que parecia lençol lavado e secando no varal, de tão fresca e de tão aconchegante.
O pé de manga ficava no sítio onde passávamos as férias da escola, onde a gente se distraía dos lápis, imaginando que ao invés de contas e cálculos, ele podia ser amigo da borracha e se tornar um herói, um lutador que salvava a canetinha rosa das garras de uma bic sem tampa. Nas férias de verão no sítio, perto do pé de manga, o caderno servia para servir as folhas para se transformarem em barcos de papel que iam, riozinho abaixo junto com as histórias que contávamos.
Nesse sítio e perto do pé de manga tinha uma casinha de madeira, dessas que a gente quer viver no verão porque tem frestas em todos os lados e dessas que a gente quer viver no inverno porque tem forno à lenha e um cheiro de bolo de fubá que toma os olfatos e nos faz fechar os olhos. Involuntáriamente.
Nessa casinha morava dona Nenê, uma senhora gorda, baixa, negra e que tinha apenas dois dentes e um sorriso largo. Sorria assim, com a alma toda, com o corpo todo quando a gente chegava e tinha lá seus sessenta e todos os anos.
Dona Nenê morava nessa casinha de madeira com frestas por todos os lados que eu via o vento entrar e insistir em dançar com o fogo do fogão à lenha. Eles dançavam nesses dias de calor de um lado para o outro. O pouco vento que entrava tocava gentilmente esse fogo, como se pedisse a honra de poder dançar. E era tanto desejo que a lenha estalava pequenas estrelinhas de calor que eu imagina ser o amor de ambos, a necessidade que tinham de terem um ao outro.
Nas férias no sítio ao pé de mangueira, Dona Nenê nos vinha servir um sorvetinho que ela fazia em modestas forminhas de gelo. Sorvetinho feito de água, açúcar queimado, côco ralado e leite. Eu ainda hoje sinto o sabor desse sorvete lambido com a alma infantil que eu tinha e com o vento tocando os cabelos, emaranhando-os aos poucos, roubando e levando o perfume do shampoo aos quatro cantos.
Nessas férias de verão, o pé de mangueira era a nossa casa. E ali a gente morava, fazia casinha, bolinhos de terra e sentia que nada, nada de ruim no mundo poderia nos acontecer.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Deus Dará

"Deus é um cara gozador,
Adora brincadeira"

A música "Partido Alto" de Chico Buarque tem vindo muito a minha cabeça nesses dias. Eu sempre fui uma pessoa de fé, no sentido literal da palavra. Cresci em uma família católica, fui batizada, fiz catequse, fiz crisma, participei de grupo de jovens da igreja e veja bem, até dei aula de catequese. É, eu também não acredito que fiz isso, mas faz parte da minha história, não tenho como negar.

Eu tenho até nas minhas lembranças de infância uma discussão muito importante que acontecia em casa aos domingos, talvez a primeira grande escolha que tive que fazer na minha vida: como todo bom católico, domingo é dia de missa.

Não importava a idade, o tempo, o vento, aos domingos lá ia a família Basoli toda para a missa. A minha primeira discussão, se bem me lembro com os meus pais (sim, houve outras) era que dia de domingo era dia de ir à missa. Eu podia escolher que horário queria ir: tinha a missa das nove da manhã e das sete da noite.

Na verdade, de domingo eu queria ficar dormindo, eu não queria ir à missa e à noite, sete horas passava o programa "Os Trapalhões". Ah, belo anos 1980...

Está bem, serei sincera: a discussão principal para mim era que de manhã também passava o programa da Disney com desenhos do Mickey e do Pato Donald (Indústria Cultural) e eu tinha que escolher: ou ia na missa de manhã pra ver "Os Trapalhões" à noite ou via os desenhos da Disney e ia à missa à noite e perdia "Os Trapalhões".

Foi um grande dilema na minha vida. E me lembro mais ainda que preferia que a gente ficasse em casa, todos, tomando café da manhã e conversando do que ir à missa. Mas que enfim eu preferia ver "Os Trapalhões" e acordava cedo indo à missa. As pessoas achavam lindo a família Basoli inteira na missa, todos os filhos, sentadinhos, ouvindo o padre.

Eu achava um porre. Ficava quieta, sentada observando as pessoas e inventando histórias. E o que era aquilo que as pessoas comiam? Eu queria era ver o gosto daquele pãozinho e um dia eu tive a blasfêmia de perguntar se passavam patê antes de servir paara aquela fila de gente...levei um esculacho. rs

Mas enfim, contei essa história porque hoje me veio à cabeça novamente a questão da fé, de acreditar em Deus. Sério, eu não duvido que possa haver, existir algo maior que nós. Excumuguem-me cientistas! Mas não sei, penso em Deus como um cara gozador, tal qual Chico descreve na música.

Ao acordar hoje, ouvi na janela de casa uma senhora no celular conversando. Ela dizia para amiga:
- Mas é assim mesmo, Deus qué que seja assim.
- ...
- Eu sei, mas Deus é que sabe.
- ...
- Deus é mais, Deus é maior e há de prover.
-...
- Fica com Deus você também.

Eu sou uma pessoa que também falo isso. Tal qual um mantra, acho. Deus é uma palavra bonita. Mesmo. Falar para alguém "Fica com Deus" acalenta um tanto nossa alma. Dá uma sensação de proteção de que se eu estou longe, Deus que cuide. Algo assim. Eu sempre falo isso para os meus irmãos: Fica com Deus. Talvez por amá-los muito.

Mas eis que pensei nisso e imaginei: bem, Deus está ferrado. Tem um povo imenso aí pedindo, pedindo, pedindo. E como eu sempre imaginei ele como um cara barbudo, barrigudo e meio gozador, penso que nessas horas ele olha e diz: Caralho, tenho coisa pra cacete pra fazer.

Está todo mundo pedindo algo: força, saúde, dinheiro, emprego, amor, proteção e que Deus cuide, que Deus dará e etc. Um vez li um livro da Carol Bensimon "Pó de Parede", em que o primeiro capítulo "A Caixa" a personagem Alice questiona a situação das nossas escolhas: se é assim é porque Deus quer. E ela questiona isso discutindo a questão do destino, se é assim é porque estava escrito e etc.

E eu parei para pensar nisso hoje.

Deus está ferrado. Tem um mundo aí cheio, cheio de problemas. Gente morrendo, gente se matando. Guerra, morte por fome, morte por morte e tantas outras questões. E eu lembrei dessa música ao imaginar que Deus é um cara gozador e adora brincadeiras, pois pra me botar no mundo tinha o mundo inteiro.

E eu questiono meus pais e pergunto "Porque vocês não ficaram na Europa? Porque vieram para o Brasil e eu tive que nascer aqui? Eu podia estar morando na Suécia agora, na Suíça..." e daí me lembro que, bem, pode ter sido Deus. Deus quis assim e há de prover o que eu necessito.

Ahã.

Mas eu acho que antes da gente vir pra cá, deve ter uma escolha no céu, ou sabe-se lá Deus onde, onde a gente mesmo escolhe o que a gente quer: quem vai ser nossos pais, irmãos, onde vamos nascer, o que vamos fazer e etc. E eu imagino esse lugar com várias, várias filas inteiras em que as pessoas ficam paradas esperando pra receber seu dom.

Por exemplo, tem a fila da beleza. Um monte de gente está nela, mas do lado, tem a fila do "bonitinha, mas ordinhária". E uma galera dessa fila da beleza, cai nessa outra fila e vem pra Terra assim. Vem bonitinha, mas ordinária.

Tem também a fila do sucesso, no qual Gisele Bunchen entrou por vias ilícias três vezes. Eu entrei nessa fila também porque sou do mesmo ano que Gisele nasceu, mas ela me empurrou, lembro claramente para a fila do esforço. E eu nasci bem, bem esforçada. Eu sou uma pessoa esforça. Tenho certeza que esse é o meu dom.

Tem a fila dos sem vergonhas, no qual muitos políticos se infiltraram sem vergonha alguma e entraram umas 20 vezes pedindo esse dom. "Deus, quero ser sem vergonha, cara de pau".

E por aí vai. Daí eu imagino que Deus, esse cara gozador, fica em um escritório, no canto, bem no canto, perto da saleta do café protocolando pedidos que chegam aos milhares. Ele olha, analisa e vê se vai conceder a benção ou não. Os meus pedidos sei que estão numa pasta vermelha, perdidos

Quando chega algo que eu peço Deus olha e diz: Ai Lídia, por favor.. dá uma risadinha de deboche e deixa no canto. E assim vai.

Ele olha da janela desse escritório para a Terra e pensa: porque raios eu dei o livre arbítrio pra esse povo? 

Deus é um cara gozador mesmo. Mas há de prover. Isso há.
É só ter fé.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A cidadezinha de Não Tem

Era uma vez um cidade, dessas cidades bem pequenininhas que não tem espaço chamada Não Tem. Era uma cidade que o povo, os nãotenhenses não tinham nada. Aliás, tinham sim, tinham uma casinha bem pequena, dessas bem pequenininhas em que não tem lugar para colocar uma simples geladeira e uma cama de casal.
A praça da cidade de Não Tem não tinha árvores, não tinha bancos e não tinha passarinhos. E os nãotenhenses passavam lá todos os dias não tendo vontade de parar para ver o pôr-do-sol porque eles diziam que não tinha graça.
Na cidade de Não Tem tinha lojas. Lojas bem pequenas e com produtos diversos. Mas qualquer produto que vc perguntava se tinha para a vendedora nãotinhense que também não tinha educação ela respondia seco: não tem.
E assim a cidade de não tem ia. O prefeito da cidade, o Coronel Isso Serve era o mandatário, ele comandava o que devia não ter em cada lugar daquela pequena vila, porque convenhamos, a cidade não tinha condições de ser chamada de cidade.
Como as pessoas não tinham educação, saúde, lazer, transporte e trabalho elas também não tinham o que fazer. A não ser falar da vida dos nãotinhenses alheios. Contudo, à noite tinha uma diversão garantida em Não Tem: tinha uma televisão ligada em um bar que não tinha cerveja gelada e nem petiscos. As pessoas iam lá ver novela. Sim, novela tinha. Mas não tinha cadeiras para eles sentarem para ver a novela e muitas vezes não tinha energia na cidade de Não Tem.
O prefeito Isso Serve tinha o sobrenome Acomodado. Nome dos fundadores da cidade, daí o prestígio que, por certo, ele tinha. A população o chamava assim: Senhor Acomodado.
Um dia um nãotenhense resolveu ousar e saiu da cidade de Não Tem sem ter nada em mãos. Andando sem ter rumo encontrou uma outra cidadezinha. A cidade se chamava Boa Vontade e era coordenada não por um prefeito, mas por um senhor que entendia de administração pública chamado Constante. O sobrenome dele era Esforço e todo mundo o chamava assim: Senhor Esforço.
O cidadão nãotenhense não tinha nome, era apenas uma pessoa qualquer de Não Tem e ficou impressionado com a capacidade da cidade de ter as coisas: as casas tinham luz, gás e água. A população tinha segurança. As crianças tinham creches e escolas e olha só, o dinheiro utilizado da cobrança irrisória de impostos (em Não Tem tinha impostos) era revertido para educação, saúde e pesquisa. Em Boa Vontade tinham médicos, professores, dentistas e todos veneravam o Senhor Esforço.
O cidadão nãotenhense ficou tão impressionado que levou a ideia para o Senhor Acomodado. Tentou marcar um horário, mas não tinha horário. Fez plantão em frente à prefeitura da cidade de Não tem e percebeu que não tinha paciência para aquela demora toda. Mas daí lembrou-se do Senhor Esforço e da cidadezinha de Boa Vontade e esperou. De dia e de noite. De Sol a Sol porque em Não Tem também não tinha chuva. E um dia o Senhor acomodado resolveu sair de seu gabinete para andar pela cidade de Não Tem e encontrou o cidadão a esperá-lo.
O cidadão conversou com o Senhor Acomodado e passou para ele todas as ideias da cidade de Boa Vontade, falou de como as coisas funcionavam lá, o que tinha, o quanto os cidadão boavontadeenses eram felizes e etc.
O Senhor Acomodado disse:
- Para que isso aconteça aqui em Não Tem você teria que ter feito e pedido e ter protocolado antes, um mês, dois meses antes. Em Não Tem não temos verbas, mas temos a coordenadora das verbas que é a Senhora Burocracia.
O cidadão nãotenhense sem nome ficou triste e pela primeira vez na vida teve vontade de chorar. As pessoas de Não Tem nunca tinham vontade de chorar porque não sabiam que existiam outras coisas e também porque a família Isso Serve Acomodado não mudava e nem dava direção de nada para mudar.
Então o nãotenhense voltou à cidade de Boa Vontade e estagiou com o Senhor Constante Esforço.
Dia a após dia, o cidadão foi aprendendo, aprendendo e quando viu era o braço direito do Senhor Esforço e então um dia, na Câmara Municipal de Boa Vontade o cidadão nãotenhense recebeu o título de cidadão boavontadeense e um nome: Senhor Dignidade.
E então ele saiu de Boa Vontade e percorreu o mundo levando as ideias tão bonitas daquela cidadezinha.

Ah é, vocês querem saber o que aconteceu com a cidade de Não Tem? Eu não sei, não tenho notícias.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Noite

E o único sorriso que tinha era um sorriso forçado. Arrancado à força, meio termo entre um dente e outro. Tal qual uma dentadura em um copo de vidro transparente com água: ri porque tem que rir. Apenas por isso.
E a noite que era a mais temida de todas chegava lentamente, junto com aquele sorriso forçado de tentar um bem-estar falso, uma alegria comprada em banca de jornal. E com a noite vinham todos os medos, um a um entrando e dando boa noite, porta à dentro. Mundo à dentro, noite à fora.
E era como se nada mais existisse. E os medos, um a um iam sentando lentamente ao pé da cama. E por mais que fossem muitos, cabiam todos. Apertadinhos, todos. Sorrindo.
E tentava dormir e a cama ia se tornando uma massa de pão a sovar, apertada, rodando, amassada, sem ar, socada. E nada mais importava.
Apertava ali perto daquele sorriso forçado uma dor amargurada da vida, da dor de ser quem se era e nem ao menos sabia quem era de verdade, do que gostava, do que queria e o que ia rir de verdade. Não sabia mais rir alto. Ria baixo, com poucos dentes.

sábado, 25 de maio de 2013

Bonsai

Em meio à correria que tomava conta da casa onde Alice morava, o que mais se notava era que haviam plantas espalhadas por todo o espaço. Mesmo quem entrasse e saísse rapidamente topava com uma rosa, flores em pequenos vasos, plantas em vasos grandes e um vaso de coqueiro recém-chegado e que deveria ser plantado, como tudo na casa de Alice, urgentemente.
Era tudo urgente onde Alice morava, precisamos ver a vó, urgente, dizia um, precisamos ver o carro, urgente, respondia outro, precisamos comprar um computador, urgente, falava um terceiro, tem que fazer compra, urgente, respondia a empregada.
Era tudo urgente, menos os desejos de Alice que se fundiam e se confundiam no mundo em que ela morava. Uma parede do quarto pintada de azul, outra pintada de rosa, outra branca. Uma cama de madeira no meio do quarto encarpetado mostrava que, mesmo tendo um entra-e-sai de gente o tempo todo na casa, Alice permanecia sozinha, dormia sozinha, sonhava sozinha.
O tempo que Alice ficava na casa ela usava para observar, ver as pessoas entrando e saindo e ver as formigas que teimavam em se espalhar na pia da cozinha, por que andam em fila? por que moram em um buraco tão apertado? Alice se questionava. E de pouco, entendia.
Ela também se sentia apertada ali onde morava em meio às plantas, em meio às pessoas.
A casa era grande e todos admiravam como ela funcionava bem, tal qual uma máquina as pessoas conseguiam ir vivendo, e Alice não sabia se viviam suas vidas, mas iam vivendo. O apito do sorveteiro insistia em tocar, os carros insistiam em buzinar na rua que Alice morava e mesmo assim, mesmo em meio a todo o caos que se instalava em barulhos, Alice ouvia o galo do vizinho cantar. E era bonito. Alice gostava de ouvir e de mexer com o galo.
Alice tinha onze anos e mal conseguia conversar com os pais. As conversas giravam em torno de tentar entender porque Alice agora já tinha peitinhos, o perigo que era ser mulher, o problema que era viver. Nunca ninguém perguntava para ela o que ela sentia. Os outros sentiam e diziam você deve estar sentindo isso, Alice e se desesperavam em busca de médicos, de padres, de psicólogos e de conversas com a vizinha que malemá sabia a idade de Alice.
Sim, ela sente isso, ah, deve ser porque está crescendo, mas é normal? questionava uma desesperada mãe, deve ser, respondia a vizinha sem muito interesse no rumo que a vidinha de Alice ia tomando.
E então um dia um amigo oriental do pai de Alice chegou em casa com um presente. Alice não conseguia distinguir muito bem essa questão das pessoas serem diferentes. Achava bonito os olhinhos puxados, achava bonito e diferente. Mas não conseguia entender o que é e como seria se ver assim e enxergar o mundo com os olhos tão apertados. A não ser quando Alice queria chorar e sentia também oriental. Seus olhos apertavam-se e escorria uma lágrima. E então Alice abria os olhos bem devagar para ver se enxergava igual ao amigo oriental de seu pai. Mas não enxergava.
Alice era pequena e tinha os cabelos claros, ralos e era muito, muito magrinha, dessas meninas que as pessoas se preocupam quando venta. Tinha sardas e longos cílios que a mãe fazia questão de dizer, essa puxou a mim, mesmo os cílios da mãe sendo curtos. Alice não entendia. Ela tinha onze anos e uma preocupação excessiva em ser boa, muito boa. Tanto que é que quando amigo oriental do pai chegou na casa de Alice com um presente, Alice foi logo dizendo, boa tarde, tudo bem? quer um café? mas Alice nunca souber passar café. Era só uma forma educada de continuar com a preocupação excessiva que tinha em ser boa.
O amigo oriental do pai lhe trouxe um presente que deixou Alice muito, muito curiosa. Era uma planta, tal qual uma planta grande, uma árvore grande, mas era uma planta pequena. Bem pequena, mas tinha as característcas de uma árvore de mais de cem anos. Alice era curiosa e adorou o presente que o pai ganhou. Mesmo que o presente fosse para o seu pai, Alice ficou feliz em ver uma planta, mais uma planta, diferente em casa. E era uma planta curiosa, Alice pensou.
O amigo oriental o pai de Alice foi explicando como e porque a planta ficava daquele jeito. Primeiro você escolhe uma árvore, e vai podando, mesmo quando ela ainda é jovem, vai podando e podando, desde a raiz, tire toda a terra da raiz e coloque a planta em um ambiente, um vaso decorativo para ela ser e ficar bonita, coloque um pedaço de plástico no fundo para evitar que a raiz cresça e coloque terra, o suficiente, nem muito nem pouco. O suficiente para a planta crescer. Corte o caule, os ramos e vá podando sempre. A arvorezinha permanecerá pequena para sempre.
E Alice prestou muita, muita atenção no que o amigo oriental de seu pai falou. E ficou a observar o pequeno bonsai por um bom tempo. Por horas a fio, não se sabe.
Apenas percebeu um certo tempo depois, quando adulta, quando mais velha, lá pelos seus vinte e poucos anos que a arvorezinha do bonsai ainda estava do mesmo tamanho, do mesmo jeito. E a casa onde Alice morava também. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam aos montes. Os pais de Alice continuavam preocupados com tudo e com todos. A casa ainda estava cheia de plantas e a arvorezinha de bonsai continuava lá, no mesmo lugar, insistindo em crescer e o pai de Alice insistindo em cortar a mesma a cada novo galho que saía. E Alice apesar de adulta também continuava do mesmo jeito.
Alice então percebeu que se parecia com o bonsai. A cada tentativa de ser ela mesma, alguém lhe podava a alma. Aos poucos. E Alice foi ficando grande e pequena ao mesmo tempo, enraizada naquele espaço que ela mal conseguia respirar.
E então um dia Alice voltou do trabalho e pegou o bonsai. Pegou o bonsai, olhou-o firmemente e danou a ir ao quintal, perto do muro onde ela ainda ouvia o galo de quando era criança cantar. O galo deve estar velho, pensou Alice.
Então pegou o bonsai e colocou fogo na arvorezinha e foi vendo pouco a pouco os galinhos do bonsai sumirem, lentamente irem virando pó. Alice olhava atentamente a cena. Os galinhos do bonsai iam-se esfarelando, tornado-se migalhas do que um dia podia ser uma planta forte.
Alice deitou-se no quintal abraçada ao pequeno bonsai que queimava. Foi olhando aos poucos o Sol se pôr e a Lua chegar. Quando finalmente não se sabia mais o que era o bonsai e o que era a roupa de Alice, sua pele, seu relógio, quando tudo tornou-se um só, Alice abriu os olhos viu a Lua e sorriu.
E nunca mais acordou.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A Casa

Quando eu era criança, eu imaginava que seríamos eternos. Seria eterna a dor da despedida da sua melhor amiga da escola que iria para outra escola, seria eterna aquela noite que antecedia a temível prova de física, seria eterna a presença dos seus pais, seria eterno o lugar onde a gente nasceu.
Eu vivi em uma casa de esquina pequena, bem pequena, até os 17 anos.
Era pequena mesmo, de ter dois quartos, uma sala, um banheiro (dividido em várias pessoas) e uma cozinha que tinha o chão feito de uma pedra vermelha forte, queimada que ficava bonito quando se passava a enceradeira, quando se agachava no chão para passar cera, quando se comparava o piso da cozinha com o taco da sala.
E a casa era o que tínhamos de melhor.
A porta da sala ainda tinha aquelas aberturas, tipo uma portinha sabe? que era para ver quem chegava antes de abrir a porta. Mesmo que tivéssemos portão, a porta da sala tinha isso. Eu achava isso estranho e bonito ao mesmo tempo. Porque a porta da sala quando aberta ficava refletida no piano que a gente tinha em casa e encostada no som onde meu pai ouvia os discos dos Beatles e do Creedence. E era nessa casa onde a gente morava.
Lembro da minha mãe grávida sentada na cadeira de área no pequeno jardim com os pés na grama tentando aliviar o calor de um mês de dezembro da década de noventa. A casa era número oito-um-oito.
Depois, mudamos de casa, para a casa de trás, maior, espaçosa, com mais quartos. E a casinha da frente continou a existir.  Com suas paredes, seus dois quartos, sala, banheiro e cozinha.
E eu nunca mais tive vontade de entrar na casa. Eu passo sempre em frente a casa de número oito-um-oito que tem o mesmo muro de quando eu era criança e me arriscava com meus irmãos e meus primos nas férias a pular de cima desse muro na grama, competindo para ver quem pulava mais alto.
A casa está lá, as paredes estão lá, está tudo lá. Até mesmo a minha memória que ficou presa lá, danada, insistindo em permanecer em se reproduzir entre assombros e lembranças descabidas de saudade. Como em um filme antigo, preto e branco, delicado, feito em película.
Uma construção antiga, pequena, tijolo a tijolo como a minha lembrança insiste em construir cada vez que fecho os meus olhos. E é dentro desses olhos que o coração passa o filme da minha infância, os personagens que lá estiveram, dos meus irmãos pequenos brincando no quintal, na área, da chegada do Papai Noel pela primeira vez e quando eu vi quem era o Papai Noel de verdade depois que numa madrugada qualquer naquela área da pequena casa meu pai tirou os presentes do porta-mala do carro...
Eu não sei ao certo quando terei vontade de voltar lá, naquelas paredes cobertas de lembranças, naquela sofá de alvenaria coberto da gente sentado vendo televisão e da minha mãe trazendo o mingau para a gente comer vendo os filmes que passavam na sessão da tarde.
Eu não sei ao certo mesmo se isso vai acontecer um dia, se eu vou voltar lá mesmo, se vou conseguir entrar na casa.
Só sei que a minha memória mora lá. E liga todos os dias para o  meu coração me passando informações precisas acerca daquele espaço que hoje existe porque foi construído na lembrança mais doce de um: manhê, paiê! tive um sonho ruim, posso dormir com vocês?
E aconchegada, os sonhos bons voltavam naquela casinha pequena de esquina.