segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O Perdão

Era uma tarde normal, uma pouco mais abafada do que as outras por falta de chuva, mas uma tarde de quinta-feira como qualquer outra. As folhas pouco se mexiam nos galhos por falta de vento e os mosquitos, desses pequenos mosquitos de frutas estavam aos montes na sala do Altair.

Bom, para quem não conhece o Altair (homem alto e honesto) a questão principal é saber que Altair, no alto de sua vida, aos 40 e poucos anos, nessa tarde de quinta-feira resolveu que ia fazer as pazes com o passado. Sim, resolveu que ia perdoar a família, os amigos e as ex-namoradas de todas as dores que teve na vida. Saiu do trabalho naquela tarde de quinta-feira abafada e passou no mercado. Comprou pães, queijo, massa de macarrão e um molho especial.

Chegou em casa em silêncio, mesmo morando sozinho o que se torna a partir daí algo a ser pensado, chegou em casa em silêncio como se não quisesse fazer barulho para acordar a esposa e começou a pensar o que iria fazer para perdoar aquele que tirou o seu sono durante anos: o seu tio Virgínio.

Virgínio até que era um homem bom, parecia pelo menos, mas ao longo da vida (Altair e Virgínio tinham a mesma idade, quer dizer, Virgínio era exatos 6 anos e meio mais velho que Altair) Virgínio acabou extrapolando algumas questões e roubando de Altair aquela que tinha sido seu amor: Neusa, a morena mais bonita da vila.

Altair nunca perdoara Virgínio por isso. Nunca. E Virgínio, para variar, se fazia meio de sonso, de bobo, confessando para Altair o tanto que gostava de Neusa. Para você ter uma ideia, quando ambos eram jovenzinhos, Virgínio percebeu que Altair gostava de Neusa e para evitar que algo a mais acontecesse, zás, se antecipou e contou ao sobrinho:

- Altair, acho que estou gostando de alguém.
- Quem, Virgínio?
- Da Neusa, a morena mais bonita da vila.

Altair, boa alma que era ouviu atentamente, piscou os olhos, os dois juntos, respirou fundo e disse:

-Virgínio, se ela é seu amor, vá atrás dela.

E assim Virgínio fez por toda a vida. Enchia o Altair com mentiras, sorrisinhos bobos, vivia na casa da mãe de Altair, sua irmã, almoçava, jantava e veja bem, pedia favores ao pai de Altair: dinheiro é claro e servicinhos em geral que não sabia fazer.

Mas nessa tarde quente de quinta-feira, nessa tarde abafada, Altair decidiu que aquilo não iria mais atormentar seus sonhos, seus piores sonhos no qual Virgínio aparecia sempre, sorrindo e roubando-lhe algo. Discussões homéricas aconteciam em seus sonhos e Altair acordava cansado, mal humorado e a culpa ali era de Virgínio.

Pois muito que bem: naquela tarde passou no mercado e como eu disse comprou pão, queijo, macarrão e um molho especial. Ligou para Virgínio.

- Virgínio, sou eu, Altair.
-....
- Sim, estou bem e você?
- ....
- Pois é, há quanto tempo rapaz...
- ...
- Não, não tenho raiva de você, já passou. Aliás, por isso estou te ligando. Venha jantar aqui em casa.
- ....
- É, jantar, nós dois, Vamos conversar, vamos nos perdoar.
- ....
- Não não, não precisa trazer nada não.
- ....
- Tá. um vinho então, Traga um vinho.

E assim a campainha tocou e Altair abriu a porta. Virgínio, homem alto como ele, estava um pouco mais careca, mais gordo, mas ainda assim era Virgínio com sua cara de sem vergonha e seu riso faceiro de anos atrás.

- Eu trouxe o vinho. Posso entrar? - perguntou Virgínio.

Os dois então se abraçaram e o jantar começou. Festa, era festa aquele dia. Como um Natal, um renascimento. Os dois celebraram, riram, choraram e se diga-se de passagem, se perdoaram. Neusa, a morena mais bonita da vila, casou-se com Alcides, amigo de Altair e Virgínio, mas que era baixo e gordinho. Cheio de dinheiro, isso lá é verdade, Alcides era cheio de dinheiro. Mas Neusa era agora uma senhora casada, gorda, mãe de 3 filhos e avó de 7 netos.

Altair e Virgínio comeram o macarrão, o pão com queijo, beberam o vinho e dormiram. Dormiram bem. Virgínio na sala e Altair no quarto. Dormiram bêbados, felizes e naquela noite, pela primeira vez em anos, Altair dormiu bem, tranquilo, descansado. Tirou um peso das suas costas ao celebrar com Virgínio uma nova vida, um recomeço.

Acordou tranquilo.

Mas, não sei bem o motivo, Virgínio não acordou pela manhã, e nem pela tarde. E muito menos à noite. Havia morrido. Deitado ali no sofá de Altair, como se estivesse em sono profundo, e estava, Virgínio havia morrido.

Altair saiu para trabalhar normalmente. Viu que havia louças para lavar. Viu que Virgínio não levantou e que não se mexia. Viu que a garrafa de vinho estava vazia. Mas saiu feliz pela porta. Perdoado da vida.

Mas antes de fechar a porta, olhou para a sala, a cena toda, Virgínio deitado imóvel, e pensou:

- Quando chegar à noite limpo essa bagunça.

E fechou a porta.

O dia amanheceu abafado de novo, mas dessa vez, Altair tinha certeza de iria chover. Certeza.
E sorriu jogando a chave do carro para cima com uma mão e pegando com a outra antes de abrir o veículo.