domingo, 26 de junho de 2011

Carne Viva

Quatro décadas de casamento. Quarenta anos juntos. Intensamente juntos. Pelo menos da minha parte. No meu corpo o cheiro dele exalava, brotava pelos poros. Já não sabia mais qual parte de mim pertencia a mim e se era eu.
O amava com todas as minhas forças, com todas as minhas dores. Amava-o como era e lhe perdoava os defeitos sorrindo, sem qualquer rascunho de dor na alma. Os defeitos dele também eram meus defeitos. Eram meus e parte de mim.
Traiu-me inúmeras vezes, incontáveis vezes. Com mulheres mais novas,  com mulheres mais velhas. Com pensamentos e com olhares lascados e enviados a esmo por onde ele passava.
Teve um filho, sim, comigo também. Mas com outra. Fez a pobre moça abortar.Ela obedeceu. Não quis o filho. E tão logo também não quis a moça.
Voltou para mim como tinha que ser. E as minhas dores latentes, ainda abertas em feridas rasgadas, cicatrizaram-se como por milagre. Ele estava de volta a minha cama, aos meus braços, meu pelos e meus carinhos.
Mesmo derramando lágrimas de sangue, sorria. O abracei, o amei e o acariciei como se não tivesse saído de casa nem por um minuto.
E sem um acordo, sem uma questão de piedade, ele me pediu a separação em um dia desses qualquer. Um dia que para mim estava nublado, cinza de cigarros fumados ao desespero espalhadas pela casa, pelo tapete, pelo carpete, pela cama.
Eu não tinha força para levantar. Minha aliança, nossa na verdade, doída, enraizada no meu dedo como se já tivesse nascido ali. Marcava o Sol de quarenta anos juntos. Ela não saía do meu dedo, a dor não passava.
Minhas lágrimas pareciam que encharcavam não aquele travesseiro cheio dele, cheio de cheiro dele, mas pareciam que alagavam minha alma e manchavam cada pedacinho de pele.
Eu era a partir dali uma imagem amorfa, deslocada de sentido.
Estava em carne viva, espaçada em um momento que parecia ser um mosaico do que fui. Pedaços por todos os lados. Cacos de mim que jamais iam se colar novamente.
Arrastei-me pelos cantos da casa buscando-o. Esses cacos não se juntavam, e quando assim o faziam não era mais eu, mais a minha pessoa, mas um pedaço de mim.
Escorei-me na parede tentando enxergar uma parte do espelho. Sai em disparada e fui pela cidade como quem tem um caminho. Ardendo em fogo, em dor em sangue.
Parei e vi um espaço de tatuagem. Eu precisava de uma nova dor.
Tatuei meus filhos, tatuei frases, tatuei minha alma.
Qualquer dor que não fosse mais a dor que sentia por não tê-lo.
E ele voltou no inverno com um sorriso e dizendo que me amava. Enxugou minhas lágrimas e me promete em cartas e afetos que não irá se perdoar de me perder.
Eu é que já estava perdida. Mas o abracei, o amei.
O amaldiçoei a estar condenado a mim. Ao meu corpo. Às minhas dores.

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