terça-feira, 19 de julho de 2011

Dicionário

Um dia, quando eu tinha lá pelos menos 7, 8 anos de idade eu comecei a ver o que era o mundo. Quer dizer, não é o mundo em si, mas perceber que existia alguma coisa para além do que era a minha casa na esquina, a escola, as brincadeiras, o lanches no recreio e o Progama da Xuxa. Na verdade, eu nem assistia muito a Xuxa, gostava mesmo era de ver Rá Tim Bum, onde até hoje fico feliz de ouvir um "senta que lá vem a história".
Pois bem, mas quando eu tinha essa idade mais ou menos eu já sabia ler. Achava realmente interessante a ideia de que uma palavra casada com outra, mais uma letra, mais outra formava uma frase.
Ainda que com uma certa dificuldade e um desconhecimento total do que eram determinadas palavras, eu lia algumas coisas. Coisas que algumas vezes não sabiam o que significava.
- Mãe, o que significa sexo?
- O que você está lendo, menina?
Era assim.
E então nessa época pediram na escola um livro novo, um livro que não tinha figuras e que tinha um monte de palavrinhas todas juntas no mesmo lugar: o dicionário.
Achei aquele livrinho, um Aurélio edição de 1987 (eu tinha meus sete anos aí) muito estranho, mas ao mesmo tempo muito bonitinho. Ele ficava em pé e tinha um cheiro de coisa nova muito legal.
Então eu ganhei um dicionário e pensei que agora sim, todas as minhas dúvidas estavam esclarecidas porque tinha ali todas as palavras do mundo.
Mas eu não sabia como usar aquele livro: viro de um lado, do outro? onde está palavra tal?
A professora, Tia Ana na época, explicou que as palavras seguiam uma ordem, que iam das letrinhas A a Z. A gente ia procurando aquela que a gente tinha dúvida do que era. O que a gente tinha que fazer era procurar no dicionário e ver como escrevia, o que significava e tals.
Aí eu pensei:
- Será que tem todas as palavras mesmo nesse livro? eu duvido.
Procurei em primeira instância a palavra merda. Nossa! E tinha!
Li a palavra encabulada, como se tivesse fazendo algo muito errado.
"merda: fezes, escremento".
Puxa, as palavras tinham outras palavras que significavam elas agora.
Então, transgredi.
Sem medo, peguei meu dicionário e fui para o meu quarto, sentei na cama que tinha uma boneca e duas almofadas e procurei: cu.
"ver ânus. Bunda".
Ainda ruborizada, abri o dicionário em ânus e lia rindo o que significava a palavra. Talvez com vergonha de mim, não sei. Como se alguém pudesse ver o que eu estava fazendo e pudesse dizer:
- Palavrão! você está lendo palavrão! Isso não pode!
Mas ninguém disse nada e eu continuei procurando todas as palavras do mundo, todas as palavras que eu tinha dúvida.
E eu achei o dicionário muito divertido. E comecei a procurar todas as palavras que pensava. E competia comigo mesma:
- Vou pensar uma palavra que nunca existiu, esse dicionário não vai ter.
Mas tinha!
Era algo mágico.
Foi então que com 7 anos procurei o significado da palavra morte. Meu tio tinha acabado de morrer e minha mãe tinha ficado muito triste. Muito mesmo. E eu também fiquei. Então tive que procurar o siginificado da palavra depressão.
E o que eu encontrei foi um olhar do meu pai e da minha mãe. E das tias da escola.
E foi legal de ver que no dicionário depressão também pode significar um buraco profundo, da terra mesmo,
ou do nosso coração quando a gente vê alguém que a gente gosta muito ir embora.
E assim eu achei que todas as coisas no mundo, no meu mundo, podiam ser nomeadas, podiam ter nomes, como se eu pudesse ter o domínio dos meus sentimentos, ou, ousadamente, pudesse saber o que estou sentindo, tendo que dar a cada uma das minhas sensações um nome: medo, dor, agonia, alegria.
Hoje a palavra que tenho é saudade.
O dicionário está explicando o que é, mas não sei, ainda assim, tem alguns sentimentos misturados com a palavra saudade que ainda não têm nome...
E dos palavrões, achei que o dicionário pode dar para gente uma gama imensa de palavronas, palavras bonitas, palavras que geralmente estão em desuso no nosso dicionário visual.
Então, achei o significado da palavra amigo. Achei ao longo da minha vida o significado dessa palavra. Eu não procurei no dicionário, achei no olhar das pessoas. E nesse final de semana achei mais três pessoas que cabem perfeitamente nessa palavra.
e eu nem precisei abrir o dicionário. Mas ele está lá na estante. Em pé ainda, cheio de palavras...

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