sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

MAUS

Para que serve uma guerra? Além de traumatizar gerações e enraizar sofrimentos e perdas, não acredito que sirva para mais nada. Quem viveu, ou melhor, sobreviveu a uma guerra, sabe bem disso, ainda mais se houve perda de parentes e amigos. Dizem que muitas pessoas tornam-se apáticas, perdem o gosto pela vida depois de passar por uma guerra. E o dom de transformar a dor em arte é para poucos.
Artie Spiegelman (nasceu em Estocolmo em 1948 e foi para os EUA com a família em 1951) soube como ninguém usufruir de uma tragédia para criar um épico. “Maus memorializa a experiência do Holocausto vivida pelo pai de Spiegelman, Vladek.
Acompanha sua história, quadro a quadro, desde a juventude e o casamento na Polônia de antes da guerra até o confinamento em Auschwichz. A história de um sobrevivente criada por Spielgelman é crua e sem embelezamentos. Um dos clichês sobre o Holocausto afirma ser impossível imaginá-lo. Como a guerra nuclear, seu horror ultrapassaria a imaginação artística. Spielgelman prova que essa teoria está errada”. Independent
E que trabalho fenomenal Spiegelman fez! Lá pelos idos de 1970 ele começa a escrever o livro Maus (ratos em alemão) visualizando o que foi a II Guerra Mundial na óptica de seu pai Vladek, um judeu que esteve preso nos campos de concentração de Auschwichz.
Mas Spiegelman não escreveu um livro sobre a guerra apenas. Fez, a partir das vivências e histórias contatadas pelo seu pai, um livro em quadrinhos (veja bem, inteiro em quadrinhos) sobre as tragédias, desgraças, desespero e esperança que caminhavam de mãos dadas em Auschwichz.
O jornal Washington Post escreveu na contracapa do livro Maus que o meio escolhido não poderia ser outro: e isso é a mais pura verdade. As seqüências parecem um filme e não capítulos de livros, ora sensíveis e comoventes, mas na maioria das vezes parecendo que estamos dentro de uma película de terror.
Para fazer esse trabalho, Spiegelman não mediu esforços. Originalmente, o livro foi feito em séries e publicado aos poucos na revista RAW (famosa revista de quadrinhos e artes gráficas de vanguarda editada pelo próprio autor), sendo posteriormente transformado em livro. Vá lá que só isso já seria uma louvável atuação, ou melhor, contribuição para a história do mundo, mas o autor subverteu ainda mais o leitor, transformando seus personagens em animais. Antropomorfizando as pessoas, raças e etnias.
Para explicar a escolha de Spiegelman em retratar as pessoas como animais, diz-se que essa é de acordo com algumas publicações; “uma técnica familiar em desenhos animados e em tiras de quadrinhos e foi uma tirada irônica em relação às imagens propagandistas do nazismo, que mostravam os judeus como ratos e os poloneses como porcos. A publicação na Polônia teve de ser adiada devido a este elemento artístico”.
- Não somos porcos! – bradavam os poloneses. Mas Spiegelman explica: - Os porcos têm boa reputação com os americanos por causa de programas de TV como: Miss Piggy e Pork Pig – dizia o autor.
Os judeus são ratos e os alemães gatos. Nada mais justo e certo do que isso. Os americanos, naquela loucura intensa de competição, são cachorros que correm ferozmente atrás dos gatos da velha Europa.
Ainda outras raças são retratadas como animais: os franceses são sapos, poloneses são os porcos (como já foi dito), os suíços as renas, os ursos são russos e os britânicos são peixes. Ufa, é animal que não acaba mais! E todos demasiadamente humanos, como dizem vários críticos.
No primeiro contato que você tem com o livro, fica um tanto quanto complicado decorar que quem é cada animal, contudo, Maus é tão denso e com um roteiro tão alinhado e bem desenhado que a gente acaba querendo decorar de uma vez para não perder o fio da história.
O autor passou por situações que estão ali retratadas de diversas maneiras: nasceu em 1948 e em 1951 foi para os EUA com o que sobrou da família depois da guerra. Seu pai sobreviveu ao Holocausto devido à inteligência que possuía, mas carregou consigo neuras e manias daquela vida magra e desumana que levou.
Spiegelman não tinha um bom relacionamento com o pai porque Vladek queria que Artie fosse dentista e não artista (olha o que o mundo ia perder se ganhasse mais um dentista!) e também pelo fato de que Artie não aceitava o suicídio da mãe.
Isso é bem retratado ao longo dessa fantástica história em quadrinhos. Sua mãe, Anja, se suicidou pouco tempo depois de ir para os EUA. Imaginar o que essa mulher passou em Auschwichz justifica um tanto quanto suas ações.
Richieu, o irmão mais velho de Artie, morreu na guerra com pouca idade envenenado por uma tia que não queria vê-lo no campo de concentração. Essa forte ligação entre Artie e Richieu, o irmão morto que ele não conheceu, também é retratada no livro diversas vezes, com a foto original de Richieu nas imagens em falas e lembranças do velho Vladek.
O livro poderia ser considerado apenas mais uma contribuição para a história do mundo, mas por ser tão bem elaborado, Maus pode ser referenciado como uma obra de arte em vários campos de atuação, desde história até desenho e cinema, se considerarmos suas técnicas e artifícios.
Em alguns momentos, a ilustração é de tamanha expressão que fica até difícil de ver e não se emocionar e não se reconhecer ali. Como no reencontro de Anja e Vladek ou a morte dos amigos próximos (por fome e maus tratos) em Auschwichz.
Lendo Maus a gente aprende não só história como também a respeitar e conhecer o outro, além de se surpreender muitas vezes torcendo por determinadas personagens, se emocionar e se colocar no lugar do próximo, imaginando aquela situação desoladora com sua família ou com você mesmo. Enfim, um pesadelo.
Dessa forma, ler Maus é obrigatório. Um presente para quem quer conhecer a história do mundo. Deveríamos aprender isso na escola.
Assim, aqui vai uma dica para quem vai conhecer MAUS pela primeira vez: cuidado ao ler o livro antes de dormir. O efeito causado é de uma reflexão sem tamanho. E mesmo quando seus olhos quiserem fechar, você vai ficar bravo consigo mesmo por não conseguir terminar de ler aquela página, ou aquele capítulo...
Além do que, o livro provoca na gente indigestão e insônia que fazem com que escutemos uma dupla que pouco trabalha junto nos dias de hoje: o cérebro e o coração...

Um comentário:

Bernardo Britto Guerra disse...

Ele conseguiu a façanha de Primo Levi, em jogar o horror na nossa cara, do jeito que ele foi, sem nunca perder a humanidade