Farinha pouca, meu pirão primeiro
Oswaldo Mendes
Do coletivo teatral que conseguirá pagar o imóvel alugado graças ao programa de fomento da Prefeitura de São Paulo, ao grupo da pequena e longínqua cidade agraciado por um dos Pontos de Cultura do governo federal, sem esquecer os municípios que se agitam com as periódicas viradas culturais do governo paulista, estamos todos satisfeitos. Para quem se acostumou a viver, nos últimos tempos, da mão pra boca, não há do que reclamar. Talvez seja por isso que, na recente campanha eleitoral, a palavra Cultura sequer tenha sido pronunciada, menos ainda discutida, por nenhum candidato a qualquer cargo. E não faltaram pagodeiros, palhaços, atores, sambistas e outras celebridades de calibres diferentes apresentando-se aos eleitores.
Nem os candidatos que em sua biografia lembram, quando oportuno, terem alimentado veleidades artísticas na juventude e os que ainda hoje cometem versos apaixonados ousaram tocar no assunto. Por quê? Simples. Vai tudo muito bem e quem se queixa é porque ainda não chegou a sua vez de ouvir tilintar no pires as moedas redentoras. Basta um pouco de paciência. Quem sobreviver terá seus trocados. Alegrem-se, pois há bolsas para todos. Até para os entretenimentos chiques, ou megaeventos musicais, dançantes, circenses, visuais, plásticos, gráficos, cibernéticos, literários, cinematográficos e teatrais – sem esquecer as feiras de uva ou de gado – aos quais bancos, financeiras ou empresas de grande porte, nacionais ou multinacionais, destinam os seus patrocínios sob as bênçãos da Receita Federal e do bolso dos contribuintes. O pão para o circo, enfim, está garantido. Lamentar, quem há de? Talvez a Civilização e as gerações futuras, mas por enquanto elas não têm direito a voz nem voto, pois a barbárie fashion venceu e dá as cartas como nunca antes na história deste País, para recorrer à máxima irresistível dos nossos novos descobridores que singram suas caravelas neste deserto de ideias, à esquerda e à direita.
A ausência da Cultura (maiúscula, por favor) em todos os palanques reflete em primeira e última instância a ausência do Pensamento e, com ele, das ideias, que foram substituídas por receituários, apresentados pelos candidatos como panaceias (que mais parecem placebos) para as urgências cotidianas da população. Esse vazio de ideias se observa, e não só no período eleitoral, na maioria das organizações sociais e políticas, partidos à frente. Fala-se da despolitização dos cidadãos anônimos, como se ela não tivesse atingido a todos. Mesmo quando grupos de ilustres cidadãos se manifestam, o que está em pauta é o varejo da Política, seja o alerta encabeçado por D. Paulo Evaristo, sobre a ostensiva presença de Lula na campanha de sua candidata, seja a réplica de juristas liderada por Márcio Thomaz Bastos, considerando justo que o Presidente faça tudo o que faz. Cabeças coroadas que já estiveram juntas em outros e mais nobres embates, agora preferem divergir sobre circunstâncias, ainda que se reconheça a legitimidade de suas motivações atuais. Mas o que elas fizeram não foi senão reforçar a prática de caminhar olhando para a ponta dos pés, abdicando de um debate que exercite o Pensamento e seja capaz de refletir sobre ideias que possam apontar para além dos acertos e mazelas do momento. Esse é o resultado mais perverso do continuado processo de despolitização da vida brasileira, do qual nem artistas e intelectuais escaparam ao longo das últimas décadas. Também nos palcos e nas telas, sobra pouco espaço para ideias. Venceu ali, como no resto do país, o entretenimento. Eventuais exceções não contam. Há que sobreviver, argumentamos como desculpa acanhada. Como se a sobrevivência fosse o objetivo de quem acredita na Arte como valor a ser perseguido. Há formas menos envergonhadas e mais dignas de “sobreviver”.
Criou-se assim o círculo da barbárie. Se a Cultura esteve (e continua agora no segundo turno) ausente das eleições e dos discursos de todos os candidatos é porque, talvez, os que a representam também abdicaram de promovê-la. Preferem as políticas de resultado, que lhes garantam sobreviver com fomentos, viradas e pontos de cultura (em minúscula mesmo) e CEUs que apontam para lugar nenhum. Não há preocupação em refletir a respeito, nem mesmo na imprensa, que se limita a promover o nada, refém de uma invisível “indústria cultural” que pauta os seus interesses, ou, quando a consciência lhe pesa, encastela-se num iluminismo tardio. Ninguém, na imprensa ou fora dela, se espantou quando um secretário da Cultura recentemente proclamou aliviado que a sua pasta não tem nada a ver com a Educação. Não tem mesmo, na lógica dos nossos (des) governantes e dos seus sucessores. Nem a Educação tem coisa alguma a ver com a Cultura. Vigora a lei do cada um por si e o diabo para todos. Só nos resta esperar que haja Unidades de Polícias Pacificadoras para todos.
O autor, Oswaldo Mendes, é ator, diretor de teatro e dramaturgo, autor de “Bendito maldito – Uma biografia de Plínio Marcos” (Editora Leya), prêmio Jabuti 2010
3 comentários:
mais (com minúscula mesmo) triste ainda é lembrar que há 20 anos atrás (estou ficando velho) tudo era exatamente assim "mis marília (com minúscula mesmo) também reinava" a única coisa diferente era que tínhamos um teatro municipal ... Você Tem Fome De Que ?
Isso é tudo muito triste, até pq a divulgação de coisas que realmente valhem a pena é quase nula e quando vamos saber...já foi.
o analfabetismo funcional chegou até à cultura e fez dela uma piada sem graça.
eu tenho fome de cultura, mas de qualidade! e vc?
E eu que achava que essa agonia era somente por aqui, o mal das cidades chamadas de turisticas é que tanto o pão como circo se movem em direção as praias. Quem pega pouco sol se perde em meio a multidão de turistas, que quando chegam nem imaginam que o programa cultural da cidade é passear em shoppings lotados e talvez um cineminha pra assistir o próximo canditado ao oscar!
Cultura independente de altissima qualidade existe, uma pena que ainda clandestina e sobrevivendo graças a coragem e esforço de quem tem a arte como sangue.
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