sábado, 25 de maio de 2013

Bonsai

Em meio à correria que tomava conta da casa onde Alice morava, o que mais se notava era que haviam plantas espalhadas por todo o espaço. Mesmo quem entrasse e saísse rapidamente topava com uma rosa, flores em pequenos vasos, plantas em vasos grandes e um vaso de coqueiro recém-chegado e que deveria ser plantado, como tudo na casa de Alice, urgentemente.
Era tudo urgente onde Alice morava, precisamos ver a vó, urgente, dizia um, precisamos ver o carro, urgente, respondia outro, precisamos comprar um computador, urgente, falava um terceiro, tem que fazer compra, urgente, respondia a empregada.
Era tudo urgente, menos os desejos de Alice que se fundiam e se confundiam no mundo em que ela morava. Uma parede do quarto pintada de azul, outra pintada de rosa, outra branca. Uma cama de madeira no meio do quarto encarpetado mostrava que, mesmo tendo um entra-e-sai de gente o tempo todo na casa, Alice permanecia sozinha, dormia sozinha, sonhava sozinha.
O tempo que Alice ficava na casa ela usava para observar, ver as pessoas entrando e saindo e ver as formigas que teimavam em se espalhar na pia da cozinha, por que andam em fila? por que moram em um buraco tão apertado? Alice se questionava. E de pouco, entendia.
Ela também se sentia apertada ali onde morava em meio às plantas, em meio às pessoas.
A casa era grande e todos admiravam como ela funcionava bem, tal qual uma máquina as pessoas conseguiam ir vivendo, e Alice não sabia se viviam suas vidas, mas iam vivendo. O apito do sorveteiro insistia em tocar, os carros insistiam em buzinar na rua que Alice morava e mesmo assim, mesmo em meio a todo o caos que se instalava em barulhos, Alice ouvia o galo do vizinho cantar. E era bonito. Alice gostava de ouvir e de mexer com o galo.
Alice tinha onze anos e mal conseguia conversar com os pais. As conversas giravam em torno de tentar entender porque Alice agora já tinha peitinhos, o perigo que era ser mulher, o problema que era viver. Nunca ninguém perguntava para ela o que ela sentia. Os outros sentiam e diziam você deve estar sentindo isso, Alice e se desesperavam em busca de médicos, de padres, de psicólogos e de conversas com a vizinha que malemá sabia a idade de Alice.
Sim, ela sente isso, ah, deve ser porque está crescendo, mas é normal? questionava uma desesperada mãe, deve ser, respondia a vizinha sem muito interesse no rumo que a vidinha de Alice ia tomando.
E então um dia um amigo oriental do pai de Alice chegou em casa com um presente. Alice não conseguia distinguir muito bem essa questão das pessoas serem diferentes. Achava bonito os olhinhos puxados, achava bonito e diferente. Mas não conseguia entender o que é e como seria se ver assim e enxergar o mundo com os olhos tão apertados. A não ser quando Alice queria chorar e sentia também oriental. Seus olhos apertavam-se e escorria uma lágrima. E então Alice abria os olhos bem devagar para ver se enxergava igual ao amigo oriental de seu pai. Mas não enxergava.
Alice era pequena e tinha os cabelos claros, ralos e era muito, muito magrinha, dessas meninas que as pessoas se preocupam quando venta. Tinha sardas e longos cílios que a mãe fazia questão de dizer, essa puxou a mim, mesmo os cílios da mãe sendo curtos. Alice não entendia. Ela tinha onze anos e uma preocupação excessiva em ser boa, muito boa. Tanto que é que quando amigo oriental do pai chegou na casa de Alice com um presente, Alice foi logo dizendo, boa tarde, tudo bem? quer um café? mas Alice nunca souber passar café. Era só uma forma educada de continuar com a preocupação excessiva que tinha em ser boa.
O amigo oriental do pai lhe trouxe um presente que deixou Alice muito, muito curiosa. Era uma planta, tal qual uma planta grande, uma árvore grande, mas era uma planta pequena. Bem pequena, mas tinha as característcas de uma árvore de mais de cem anos. Alice era curiosa e adorou o presente que o pai ganhou. Mesmo que o presente fosse para o seu pai, Alice ficou feliz em ver uma planta, mais uma planta, diferente em casa. E era uma planta curiosa, Alice pensou.
O amigo oriental o pai de Alice foi explicando como e porque a planta ficava daquele jeito. Primeiro você escolhe uma árvore, e vai podando, mesmo quando ela ainda é jovem, vai podando e podando, desde a raiz, tire toda a terra da raiz e coloque a planta em um ambiente, um vaso decorativo para ela ser e ficar bonita, coloque um pedaço de plástico no fundo para evitar que a raiz cresça e coloque terra, o suficiente, nem muito nem pouco. O suficiente para a planta crescer. Corte o caule, os ramos e vá podando sempre. A arvorezinha permanecerá pequena para sempre.
E Alice prestou muita, muita atenção no que o amigo oriental de seu pai falou. E ficou a observar o pequeno bonsai por um bom tempo. Por horas a fio, não se sabe.
Apenas percebeu um certo tempo depois, quando adulta, quando mais velha, lá pelos seus vinte e poucos anos que a arvorezinha do bonsai ainda estava do mesmo tamanho, do mesmo jeito. E a casa onde Alice morava também. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam aos montes. Os pais de Alice continuavam preocupados com tudo e com todos. A casa ainda estava cheia de plantas e a arvorezinha de bonsai continuava lá, no mesmo lugar, insistindo em crescer e o pai de Alice insistindo em cortar a mesma a cada novo galho que saía. E Alice apesar de adulta também continuava do mesmo jeito.
Alice então percebeu que se parecia com o bonsai. A cada tentativa de ser ela mesma, alguém lhe podava a alma. Aos poucos. E Alice foi ficando grande e pequena ao mesmo tempo, enraizada naquele espaço que ela mal conseguia respirar.
E então um dia Alice voltou do trabalho e pegou o bonsai. Pegou o bonsai, olhou-o firmemente e danou a ir ao quintal, perto do muro onde ela ainda ouvia o galo de quando era criança cantar. O galo deve estar velho, pensou Alice.
Então pegou o bonsai e colocou fogo na arvorezinha e foi vendo pouco a pouco os galinhos do bonsai sumirem, lentamente irem virando pó. Alice olhava atentamente a cena. Os galinhos do bonsai iam-se esfarelando, tornado-se migalhas do que um dia podia ser uma planta forte.
Alice deitou-se no quintal abraçada ao pequeno bonsai que queimava. Foi olhando aos poucos o Sol se pôr e a Lua chegar. Quando finalmente não se sabia mais o que era o bonsai e o que era a roupa de Alice, sua pele, seu relógio, quando tudo tornou-se um só, Alice abriu os olhos viu a Lua e sorriu.
E nunca mais acordou.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A Casa

Quando eu era criança, eu imaginava que seríamos eternos. Seria eterna a dor da despedida da sua melhor amiga da escola que iria para outra escola, seria eterna aquela noite que antecedia a temível prova de física, seria eterna a presença dos seus pais, seria eterno o lugar onde a gente nasceu.
Eu vivi em uma casa de esquina pequena, bem pequena, até os 17 anos.
Era pequena mesmo, de ter dois quartos, uma sala, um banheiro (dividido em várias pessoas) e uma cozinha que tinha o chão feito de uma pedra vermelha forte, queimada que ficava bonito quando se passava a enceradeira, quando se agachava no chão para passar cera, quando se comparava o piso da cozinha com o taco da sala.
E a casa era o que tínhamos de melhor.
A porta da sala ainda tinha aquelas aberturas, tipo uma portinha sabe? que era para ver quem chegava antes de abrir a porta. Mesmo que tivéssemos portão, a porta da sala tinha isso. Eu achava isso estranho e bonito ao mesmo tempo. Porque a porta da sala quando aberta ficava refletida no piano que a gente tinha em casa e encostada no som onde meu pai ouvia os discos dos Beatles e do Creedence. E era nessa casa onde a gente morava.
Lembro da minha mãe grávida sentada na cadeira de área no pequeno jardim com os pés na grama tentando aliviar o calor de um mês de dezembro da década de noventa. A casa era número oito-um-oito.
Depois, mudamos de casa, para a casa de trás, maior, espaçosa, com mais quartos. E a casinha da frente continou a existir.  Com suas paredes, seus dois quartos, sala, banheiro e cozinha.
E eu nunca mais tive vontade de entrar na casa. Eu passo sempre em frente a casa de número oito-um-oito que tem o mesmo muro de quando eu era criança e me arriscava com meus irmãos e meus primos nas férias a pular de cima desse muro na grama, competindo para ver quem pulava mais alto.
A casa está lá, as paredes estão lá, está tudo lá. Até mesmo a minha memória que ficou presa lá, danada, insistindo em permanecer em se reproduzir entre assombros e lembranças descabidas de saudade. Como em um filme antigo, preto e branco, delicado, feito em película.
Uma construção antiga, pequena, tijolo a tijolo como a minha lembrança insiste em construir cada vez que fecho os meus olhos. E é dentro desses olhos que o coração passa o filme da minha infância, os personagens que lá estiveram, dos meus irmãos pequenos brincando no quintal, na área, da chegada do Papai Noel pela primeira vez e quando eu vi quem era o Papai Noel de verdade depois que numa madrugada qualquer naquela área da pequena casa meu pai tirou os presentes do porta-mala do carro...
Eu não sei ao certo quando terei vontade de voltar lá, naquelas paredes cobertas de lembranças, naquela sofá de alvenaria coberto da gente sentado vendo televisão e da minha mãe trazendo o mingau para a gente comer vendo os filmes que passavam na sessão da tarde.
Eu não sei ao certo mesmo se isso vai acontecer um dia, se eu vou voltar lá mesmo, se vou conseguir entrar na casa.
Só sei que a minha memória mora lá. E liga todos os dias para o  meu coração me passando informações precisas acerca daquele espaço que hoje existe porque foi construído na lembrança mais doce de um: manhê, paiê! tive um sonho ruim, posso dormir com vocês?
E aconchegada, os sonhos bons voltavam naquela casinha pequena de esquina.